terça-feira, 17 de abril de 2012

Outro país



Conheço um país onde as mulheres e os homens passam a eternidade a traumatizar a sua delicadeza. Sentam-se languidamente numa posição angélica, frente a frente, e inauguram as suas feridas com desdém que o éter dos dedos sutura e desvela, como se um anjo digital deixasse a sua saliva na difícil compreensão dos eleitos, durante uma cerimónia para a qual não houvesse senão o motivo ciclópico do deleite arrefecido pelo carisma intempestivo do não-ser.
O silêncio enche-lhes as vesículas expectáveis do incerto. Tudo o resto orbita em redor de uma minúscula ilha obscena, com as hemorragias da noite ao fundo e a chuva miúda da renúncia ecoando uma e outra vez.

domingo, 15 de abril de 2012

Amanhã




Não há dúvida, estás sempre muito bem vestida para enfrentares o amanhã. Mas que espécie de dignidade existe na elegância que te leva a pensar que é preciso ficares assim tão elegante para enfrentares o amanhã? E acima de tudo: porque é que é preciso enfrentar o amanhã? Já pensaste que o amanhã pode não ser assim tão elegante e razoável e inclusive não suportar confrontos como pensas hoje que os confrontos serão amanhã? O amanhã pode inclusive desvalorizar a perfeição. O amanhã pode achar parolo o apelo e genial a impassibilidade. O amanhã pode não coincidir com a proposta da actualidade de que o amanhã é um sucessor legítimo do presente, sem lugar para as neoplasias do acaso. Já pensaste que o amanhã pode ter uma cárie na dependência do tempo original? Durante as parcas horas de sono, o amanhã pode ser manipulado geneticamente para não ser o amanhã que estamos habituados que o amanhã seja. O amanhã pode violentar-nos. Que sabemos nós do amanhã? Muito pouco, comparando com o que julgamos saber. E é por julgarmos todos muito bem saber que julgamos saber o que é o amanhã que amanhã não acontece como devia acontecer. Há uma cortina de fungos expeditos entre o hoje e o amanhã que não nos deixa ver o que seria amanhã se hoje nós não julgássemos saber muito bem o que o amanhã nos reserva sem mais. E é aí que se entornam todas as vacilações. E morrem todas as possibilidades. E tu, sempre muito bem vestida para enfrentares o amanhã. Independentemente de tudo. Sem dar um beijo sequer ao dia com a certeza de que lhe causarias pelo menos uma lesão superficial na vulgaridade. Já tomaste os comprimidos contra a acção dos comprimidos que tomas contra a manifestação do inesperado, já? Já te imaginaste vencida, clinicamente desonrada, indecorosa e letal? Que risco inalas nessa superstição, única pose de estátua instável à espera doutro preâmbulo? Será só uma ordem de defesa esse teu perfume acrobático que dizes exercer persuadida e incapaz? Uma dívida que queres regularizar com a realidade? Um invólucro de extracto de asas, a camisa-de-forças que a autoridade te concedeu e obriga a usar?
Não. Estás muito bem vestida e enganada não para enfrentares o amanhã, mas porque todo o teu corpo te convenceu que assim deverias de estar. Não há propriamente um amanhã, senão o amanhã do corpo que te convenceu a certa altura do contrário, de que não haveria mais amanhã. Triste, a tentação da superioridade em primeiro lugar.