terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Jean-Paul Mirage



O meu verdadeiro nome é Jean-Paul Mirage. Tenho 33 anos, sou francês e não pertenço a este século, nem tenho como digna a minha morada. Um erro cósmico, que a ciência conserva no capítulo das doenças sem fundo e a mística não perscruta por pudor ou inaptidão natural, tem-me varrido os dias como um naufrágio. E depois, a vida que me coube, ainda que desafogada de sortes que a outros pareceriam inexpugnáveis, não me permite ser, apenas durar.
Um guião altamente estruturado coloca a voz de alguém nos meus lábios. As palavras, que serpenteiam ao longo do espírito da voz, como uma espinha dorsal, são-me sussurradas. E o real nos meus olhos ferve a 1000º C e sabe-me a aguarrás.
Tenho suportado o corpo e o espírito de Andrés Salvaje durante todos estes anos, com particular complacência e até alguma ingenuidade. Mas nunca o percurso de vida de Andrés me disse nada. A sua vida é uma eterna promessa da qual foram extirpados os órgãos sexuais da esperança e não há nada de muito interessante para fazer dentro de um corpo que não é nosso, senão trabalhar continuamente para o vencer, ainda que saibamos de véspera a nossa insignificância.
Poderia estar horas a contar-vos coisas da minha vida verdadeira, que já aconteceu (e agora é retransmitida aos soluços e aos lapsos), entre 23 Janeiro de 1912 e 14 de Março de 1954, como o comboio que perdemos por um século ou por um instante. Eu vivia em Paris e amava Isabelle Orange. O mundo ainda não tinha acabado. Não demos pela ocupação da cidade, tal era a nossa azáfama. Éramos como feridas contrárias à cicatrização convencional.
Deixei Isabelle e os amigos e Paris e o meu século, apesar de tudo estável, e rendi-me ao desconforto da contemporaneidade, como um gato vadio e faminto que dorme com um esqueleto de peixe atravessado na garganta, no sofá elegante de um matadouro municipal. Como se tivesse de responder constantemente a um anúncio de emprego no caos, fui contratado para proteger e persuadir Andrés Salvaje da sua identidade intacta.
No dia em que Andrés saiba da minha existência, enlouquecerá. É, por isso, melhor que este texto nunca seja publicado.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Contágio Directo



Abro a minha boca diante da tua para favorecer o contágio, mas, sobretudo, para que se cumpra esse gesto de solidariedade radical com o desconhecido. É possível que amanhã de manhã já chegue a febre. Durante a noite os correios e os vírus trabalham melhor e entre andaimes e arrepios já vislumbro daqui uma casa na prostração e uma árvore frondosa, ao lado, cheia de pássaros e chilreios como uma dor de cabeça sublime.
Depois, cairei na cama também. Ao teu lado, rezando para que a coisa se complique. Sonhando que te amo à sombra das pneumonias em flor, à nossa volta a expectoração da Primavera dos vencidos, o ar infestado de secreções e a fadiga de sibilos, a minha mão suada aberta no teu sexo, com o meu dedo médio no melhor da tua vida e o índice de mortalidade altíssimo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O náufrago



O meu grito não surte efeito numa lógica isolada. Estou só, sou um pedaço de medo rodeado de sangue por todos os lados, e vivo num tempo invertebrado, no inferno das convenções: hoje é amanhã, amanhã será ontem e ontem foi nunca mais, mas nem sempre é assim e nem sempre será.
Não é bom, sobretudo para um náufrago, que nos troquem as memórias e as esperanças. As memórias não são apenas o artesanato da idade, mas as proposições precedentes, sem as quais seria absurdo e impensável a existência das imediatas, como as contas na constituição de um colar, os átomos na eficiência da matéria, a unidade na casa da integração. E as esperanças vivem da manhã da novidade, mesmo quando estamos matematicamente condenados, como eu. E se a novidade se repete já não é novidade. É, quando muito, uma representação congelada da novidade, ou um fóssil da novidade sem interesse arqueológico e sem qualquer consequência memoriosa válida na indústria vital.
Porque se, tal como tenho vindo a constatar, hoje é amanhã, então houve um incompreensível lapso entre ontem e hoje. Uma espécie de dia impostor interpôs-se entre ontem e hoje, negando-me o acesso ao tempo (ou à realidade?) em tempo real. E se, por outro lado, amanhã será ontem, então tudo se repete e eu sou produto de uma pálida eternidade sem contraste, prisioneiro de uma falácia ou de uma grave doença temporal, que trará consigo a degenerescência de tudo, inclusive, deste relato.
Mas, pior do que tudo, é saber que ontem foi nunca mais.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O senhor sentado ao fundo



O vinho é uma hipérbole da vida e o senhor sentado ao fundo, com chapéu e fato de asas negro, já bebeu, pelo menos, 3 hipérboles e 2 digestivos. O café está um pouco escuro e confuso, mas reconhecemos-lhe o talento: é o único café que não permite senão clientes que dominem Buenos Aires, essa Paris com personalidade borderline e elegância em ruinas, assim como tudo o que povoava a fé dessa cidade nos exultantes primórdios do século XX.
O excesso ainda não foi condenado neste café. Afixado na porta pude ler: “Abierto el primer café para uso exclusivo de quien todavía viva en el alba del siglo XX”. Mal entrei, assistia-se ao fim de um tango dançado no seu próprio sumo, com dois rivais como protagonistas, feridos pelas navalhas do seu pudor solene.
Por vezes, os tigres de Borges assomavam à jaula da promessa, com um rugido proveniente dos corpos crus dos bailarinos que se friccionavam na madrugada da sua técnica e à flor dos seus papéis. Havia dezenas de clientes entorpecidos pela técnica dos bailarinos e a sensação de sauna no tempo era tremenda, muito fumo, vozes carnívoras, tudo isso aumentava em mim o efeito estrangeiro que eu queria que nunca tivesse existido quando naquela noite entrei naquele café e tudo aconteceu.
Depois de tentar o mais possível disfarçar-me de fantasma e ignorar a lava dos olhos vivos apontados para mim, dirige-me para uma mesa perto da do tal senhor com chapéu e fato de asas negro e pouco depois fiz sinal ao camarero que me trouxesse a minha primeira hipérbole desse dia.
O par de bailarinos deixava o lugar e despedia-se e o ruído do café tornou-se quase obsceno. Algumas pessoas levantaram-se, houve muitas mesas e cadeiras que se arrastaram e toda a gente olhava agora para mim. A música tinha acabado como uma fonte esterilizada pelos velhos costumes da estranheza sem limites e o silêncio aplicado à expectativa misturava-se nos rostos ainda mais entorpecidos do que da primeira vez.
Enquanto esperava pelo meu copo de vinho, reparei que o homem de chapéu e fato de asas negro também tinha descolado os olhos do que escrevia e olhava atentamente para mim. Não sabendo o que fazer, sorri e pedi-lhe fuego, com gentileza.
Doze segundos depois, tudo explodia.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Trastornos de la percepción



Guillermo Guel (Barcelona, 1967) sofre de um transtorno raro da percepção: a “Síndrome del espejo disímil”, sendo a “Síndrome do reflexo díspar” a tradução oficial em português. Tudo o que Guillermo Guel capta com os seus sentidos reflecte o real, mas através de uma breve deslocação, seguindo-se como que um pequeno sismo ou clímax, e, consequentemente, uma apropriação parcial e delirante, mais ou menos aleatória e sinistra, do objecto, ou dos objectos sentidos. Por exemplo: uma maçã. Guel reconhece facilmente a maçã como maçã (manzana em espanhol), mas chama-lhe masanez. A língua é das primeiras coisas a ser comovida. Uma dislexia astuta e expedita cala-lhe a manzana convencional e alarma-lhe a intrépida masanez; uma masanez pronunciada como um espanhol comum a pronunciaria, se tivesse mesmo de pronunciar masanez.
E depois é o sabor da maçã. Guel geometriza todos os sabores e dá-lhes ângulos e coordenadas, nem sempre legíveis num plano ou num gráfico simples. Também para ele uma maçã não tem bem o sabor de uma maçã: uma confortável percentagem do sabor real da maçã é inventada por Guel. E as linhas com que se fazem uma maçã foram expostas a uma manobra terrível: ao longe são as linhas de uma maçã; ao perto são abstracções convulsivas. Parecem as mesmas linhas da flor que a criança caótica de Almada Negreiros representou com espanto e talento, quando lhe pediram que desenhasse uma flor. Lembram-se? A criança caótica de Negreiros foi inspirar-se primeiro ao caos e ao cosmos (onde, que se saiba, não há flores) para responder ao pedido.
Lembram-se?, pergunta-nos agora Guel, lembram-se da criança caótica do Almada Negreiros?, pois bem, essa criança sou eu. E continua-nos a contar parte da sua vida, agora em Madrid (Madryd, segundo Guel), onde se diverte a dar conferências sobre os seus desvios perceptivos, aplicados de vez ao verdadeiro entretenimento.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Os aborrecidos



Éramos fervorosos adeptos do submundo. Vítimas do tédio e da anomia que abraçava o planeta. Não fazíamos nada, excepto vadiar por objectivos. Tinha-nos sido dada a oportunidade da ironia, a simpatia pelo desprezo, o dom para nos desviarmos do imprescindível. E, claro, erámos vítimas do que escolhíamos ler. Éramos o género de vítimas que espreguiçam o seu martírio de papel ao sol de Inverno e tomam café e fumam cigarros e queimam as tardes a ler livros. Éramos ociosos de persianas corridas, atitudes de álcool e mp3. Discretos extraterrestres vestidos por dentro de Channel, Lovecraft e labirintos.

Dizer que odiávamos a actualidade é dizer pouco. A actualidade excitava-nos, e excitava-nos porque, tecnicamente, era tudo o que tínhamos. Mas a leitura compulsiva de autores que reagiram ferozmente contra ela, transportava as nossas miseráveis idealizações para uma espécie de legítimo nazismo performativo, que os outros deveriam conhecer, por sua vez, enquanto vítimas ainda mais imperfeitas, precisamente por dispensarem a consciência disso.

Quando nos sentíamos assim, inebriados por uma vingança veloz que nos rasgava o apelo pelo interdito, tentávamos dominar a fúria e recorrer a estratégias evasivas, deixando a noite inventar o excesso. Normalmente, os planos não saíam do papel e tudo permanecia. Não sei como pudemos pôr em prática um plano tão arriscado como aquele.

A partir da rendição da preguiça aos autores do nosso interesse, o tédio tinha arriscado superar-se a si mesmo e congeminar um crime. As nossas tardes explodiam naquilo que continuávamos a ler. Comprámos um caderno e escrevíamos. Não tínhamos à disposição mais do que alguns amigos em comum que também pareciam equilibristas rotineiros, sem nada mais a oferecer do que a sua bebedeira instituída, seguida de uma tristeza egoísta e interesseira, posta ao serviço da sua crescente decadência.

Não foi muito difícil juntá-los todos na casa de um deles, a pretexto de uma qualquer comemoração peregrina. Mergulhados num sadismo que dialogava com a tradição de uma forma inédita, nós fomos criando o guião para aquela noite, as cenas, a forma como cada um deles deveria assumir que se despedia.

E porque a humilhação é a mais maravilhosa maquilhagem da inveja, aquela noite durou dias, e aqueles dias foram passados assim, até que a polícia apareceu.