quinta-feira, 28 de junho de 2012

Simone Plaisir

Simone é filha de Plaisir. Plaisir pronuncia-se como prazer em francês. É uma pequena cidade situada numa sensação que eu tenho. Essa sensação, que bem poderia ser o país onde fica Plaisir, descobre-se através do prazer que eu retiro do trabalho de Steve Mcghee. Steve Mcghee é um tipo canadiano que escolhe alguns dos melhores “spots” do mundo para os transformar em propostas apocalípticas. Numa das propostas de Mcghee aparece o Porto representado. O Porto como uma das cidades berço do fim dos dias. Eleita pelo artista como uma das capitais mundiais da ruína, o Porto de Mcghee ressurge com toda a beleza premonitória da Ribeira em chamas, helicópteros a sobrevoarem sem qualquer gentileza os céus cheios de cinzas, vários embarcações à deriva, entre os quais um cruzeiro inesquecível, são lançados para o abismo que o Douro deixou revelado numa falha geológica, ansiosa e sincera, precisamente no lugar da antiga ponte D. Luís. Na imensa e misericordiosa tentação de Mcghee, a possibilidade de um sismo faria com que o Douro se esvaisse e os incêndios tomassem conta do resto. Mas a catástrofe criada pelo artista não é, por si só, um factor decisivo para que esta sensação, este país que eu digo sentir e onde eu digo sentir Plaisir, exista. A mais fulgurante sensação de Plaisir vem-me sobretudo pela incontestável evolução dos acontecimentos. Mcghee apresenta apenas um momento da catástrofe. Os outros somos nós que, voluntária ou involuntariamente, o concebemos. Numa situação de cegueira vivencial, quando olhamos um lugar que reconhecemos apenas porque alguma vez o vimos, podemos pouco contra a imagem da derrocada, porque ela arrasta consigo o antes e o depois. Mas quando vemos a nossa própria cidade sucumbir, automaticamente imaginamos mais porque somos capazes de nos imaginar também atingidos por essa extrema nitidez. É aí que se situa esse país que eu digo sentir e onde eu digo sentir Plaisir, a sua maior cidade mais bela. E é aí onde eu vou encontrar Simone, deliciosamente preocupada com as unhas e a depilação das pernas, enquanto o Porto sofre a amnésia das partículas e tudo o resto regressa ao intervalo entre menos infinito e zero.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Esperanza

A cidade chama-se Esperanza e as ruas de Esperanza estão cheias de mapas urbanos, que, por sua vez, estão repletos de círculos desenhados a marcador vermelho com a inscrição: Usted no está aquí. A provocação não faz parte do espírito de Esperanza, por isso o viajante incauto pode esquecer qualquer campanha de marketing e publicidade e concentrar-se apenas na sua bela desorientação, tentando ressuscitar a lógica e, sobretudo, nunca perder o ânimo. Assim, ao deparar-se com um dos milhares de mapas urbanos no coração de Esperanza, o viajante tem ao menos uma certeza: pode estar em qualquer lado da cidade, menos ali. A confusão agrava-se quando de 10 em 10 metros e em qualquer direcção que ouse tomar um novo mapa urbano lhe aparece pela frente com a mesma inscrição, precisamente sobre o mesmo lugar (rua, praça, avenida, encruzilhada) onde estava a anterior. Mas um raciocínio precipitado pode originar deduções fatais. Se todos os mapas representam sempre um único lugar da cidade no qual o viajante definitivamente não está, então é possível que nenhum mapa cumpra verdadeiramente a sua função e que aquela parte da cidade contemplada nem sequer tenha realidade material. Nada mais errado. Esperanza é uma cidade atípica, projectada a partir de um só extracto da realidade que se repete infinitamente pelo espaço. A Calle de la Confianza, a Avenida de los Expectantes e a Plaza de la Posteridad estão unidas entre si e, consecutivamente, às suas réplicas, que se estendem, como aranhas magistrais, até Anhelo de la Sierra, Santa Ansiedad e Ciudad Revelada, já nos arredores de Esperanza. Chegando até aqui, torna-se cómodo aceitar que o problema de Esperanza é muito menos obscuro e borgiano do que à primeira vista podia parecer, resultando menos de um enigma de características cósmicas e dissimuladas e mais da incompetência gritante dos seus serviços municipais: como em cada mapa urbano aparece apenas o detalhe do local e não uma perspectiva alargada da cidade, nenhum dos locais assinalados em qualquer um dos mapas pode afirmar que representa aquele exacto extracto da realidade. Daí a pertinência da inscrição: Usted no está aqui. Seguido do magnífico slogan da cidade: Siempre hay que tener Esperanza.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Os rostos de Oleg Dou

Passo a tarde a rever os prognósticos reservados de Oleg Dou. Dou é um fotósofo russo (fotógrafo + filósofo) que se obstina em retratar a inanição humana, mas de uma perspectiva onde o absurdo não raras vezes beija insidiosamente o rosto de cada um dos retratados, para mais ressaltar o seu comportamento de fábula mórbida e imoral. O artista apresenta-nos uma série de retratos de humanos que sobreviveram com sequelas às sucessivas crises financeiras que desde 2008 varreram o planeta. A grande maioria das pessoas expostas nas obras de Dou sofreu algum tipo de desfiguração (que a imunidade da decência tentou em vão deter ou corrigir) ou revela pequenas mutações que indiciam um sofrimento e uma angústia irreprimíveis. Nos rostos sintomáticos de Dou estão presentes os efeitos da injustiça global sobre a pele e retina, a anemia crepuscular dos vencidos, formas incessantes de albinismo de teor mais ou menos apocalíptico, restos de solenidade débil e soberania, lendas e derrames oculares e outros sinais característicos de todas as síndromes de todos os tipos de desistências adquiridas. Algures, entre a arte circense, o reino da doença e a santidade alienígena, os rostos de Oleg Dou parecem vir do futuro para nos incendiar o presente de altas premonições, olhando directamente para nós como quem olha para antepassados plebeus, ocultando um grito atrás de cada aparente antipatia, como autistas cósmicos ou trágicos entertainers do desespero.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Na fuselagem de um anjo

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Podias ser descoberta ainda com vida, na fuselagem de um anjo. Os teus olhos procurariam entre o incêndio, os destroços e o nevoeiro os primeiros socorros dos lábios. Às portas da inevitabilidade, o leite da entrega, a carne e a vontade desmascaradas. Tudo a tremer, a terra a tremer, estava a acontecer desesperadamente aquilo que ainda não tinha acontecido em nenhuma parte. Podia passar horas às voltas com o sangue que escorre docemente dos teus pulsos cortados. A misericórdia é uma música disseminada. Podia simplesmente deixar de me preocupar. Pensar na tua dor como penso no grito de Munch. Reconhecer nela mais gozo do que piedade. E depois, para ser mais contemporâneo, apoiar-me nos maravilhosos massacres de Houncheringer. Do you want to die today, honey? Do you want to die today? E já não esperar sequer de ti uma resposta válida. É fácil para um socorrista possuir a eternidade. O socorrista está agora na posição do anjo. Faz círculos com os dedos à volta dos seios da mulher despenhada e de repente prende-a à sua privacidade. A privacidade vive nas escarpas das casas de banho públicas quando entramos acompanhados. A privacidade é o anel do acaso. Um banho de ouro, enigmas gravados. Há uma missa que se celebra contra os frios azulejos do nosso ultraje. As tuas costas que escorregam no mármore do lavatório, o silêncio das condutas agressivas, as pombas que as mãos idealizam nas suas pesquisas selvagens e a respiração ofegante dos extractores de ar. Esta é a minha proposta de eternidade: eu finjo que sangro, enquanto tu estás, de facto, a sangrar. Por mais piedade que haja num socorrista é sempre a sua supremacia que te salva e não a solidariedade universal. São estes defeitos especiais que Houncheringer experimenta nas suas epifanias sanguinárias. É esta a louca comiseração de Munch pelos imperceptíveis prisioneiros da condição. É este também o meu drama

terça-feira, 17 de abril de 2012

Outro país



Conheço um país onde as mulheres e os homens passam a eternidade a traumatizar a sua delicadeza. Sentam-se languidamente numa posição angélica, frente a frente, e inauguram as suas feridas com desdém que o éter dos dedos sutura e desvela, como se um anjo digital deixasse a sua saliva na difícil compreensão dos eleitos, durante uma cerimónia para a qual não houvesse senão o motivo ciclópico do deleite arrefecido pelo carisma intempestivo do não-ser.
O silêncio enche-lhes as vesículas expectáveis do incerto. Tudo o resto orbita em redor de uma minúscula ilha obscena, com as hemorragias da noite ao fundo e a chuva miúda da renúncia ecoando uma e outra vez.

domingo, 15 de abril de 2012

Amanhã




Não há dúvida, estás sempre muito bem vestida para enfrentares o amanhã. Mas que espécie de dignidade existe na elegância que te leva a pensar que é preciso ficares assim tão elegante para enfrentares o amanhã? E acima de tudo: porque é que é preciso enfrentar o amanhã? Já pensaste que o amanhã pode não ser assim tão elegante e razoável e inclusive não suportar confrontos como pensas hoje que os confrontos serão amanhã? O amanhã pode inclusive desvalorizar a perfeição. O amanhã pode achar parolo o apelo e genial a impassibilidade. O amanhã pode não coincidir com a proposta da actualidade de que o amanhã é um sucessor legítimo do presente, sem lugar para as neoplasias do acaso. Já pensaste que o amanhã pode ter uma cárie na dependência do tempo original? Durante as parcas horas de sono, o amanhã pode ser manipulado geneticamente para não ser o amanhã que estamos habituados que o amanhã seja. O amanhã pode violentar-nos. Que sabemos nós do amanhã? Muito pouco, comparando com o que julgamos saber. E é por julgarmos todos muito bem saber que julgamos saber o que é o amanhã que amanhã não acontece como devia acontecer. Há uma cortina de fungos expeditos entre o hoje e o amanhã que não nos deixa ver o que seria amanhã se hoje nós não julgássemos saber muito bem o que o amanhã nos reserva sem mais. E é aí que se entornam todas as vacilações. E morrem todas as possibilidades. E tu, sempre muito bem vestida para enfrentares o amanhã. Independentemente de tudo. Sem dar um beijo sequer ao dia com a certeza de que lhe causarias pelo menos uma lesão superficial na vulgaridade. Já tomaste os comprimidos contra a acção dos comprimidos que tomas contra a manifestação do inesperado, já? Já te imaginaste vencida, clinicamente desonrada, indecorosa e letal? Que risco inalas nessa superstição, única pose de estátua instável à espera doutro preâmbulo? Será só uma ordem de defesa esse teu perfume acrobático que dizes exercer persuadida e incapaz? Uma dívida que queres regularizar com a realidade? Um invólucro de extracto de asas, a camisa-de-forças que a autoridade te concedeu e obriga a usar?
Não. Estás muito bem vestida e enganada não para enfrentares o amanhã, mas porque todo o teu corpo te convenceu que assim deverias de estar. Não há propriamente um amanhã, senão o amanhã do corpo que te convenceu a certa altura do contrário, de que não haveria mais amanhã. Triste, a tentação da superioridade em primeiro lugar.

sábado, 31 de março de 2012

Deuss disse



Deuss disse: dei-vos a possibilidade das lágrimas e vós persistis na recomendação do mutismo. Já não falais com chuva nos olhos, já para não falar nas palavras despidas. Nem o vosso olhar agradece o olhar do outro, como na primeira noite, onde tudo aconteceu e houve nuvens e nada ainda existia. A vossa noite atrai agora a idolatria (e só a idolatria), forma o hímen complacente daquilo que deserda o mistério por fé no equívoco e não protege ninguém.
A vossa noite não tem senão um corredor, muito íngreme e comprido, com portas regulares de ambos os lados, quartos com vista para todos os troféus, nenhum tão próximo, porém, da conveniência das janelas partidas. As vossas noites, outrora claras e cabalísticas, usufruem agora apenas do inesquecível como quem desenrola a vida em conserva e sente o cheiro oco da preservação do engenho, o corpo dietético do momento decisivo, o pequeno prazer de não estar vivo e continuar apesar da técnica do adeus. As vossas noites aborrecem-se lentamente na fórmula química do crime, como árvores que dessem frutos prejudiciais para aquele que não prova, mas observa.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Cinema assíduo



Uma máquina feroz projecta sobre um descampado algumas das mais belas avenidas, praças e ruas de Paris. Quando as imagens projectadas atingem o alvo apropriam-se do vácuo e da vastidão com a sua douta riqueza de algo, vão ao encontro da nudez desarmada, incorporam milimetricamente o espaço tomado, alastram, como uma mancha perfeita e voraz, e nomeiam as gentes, os propósitos e os lugares da capital.
A vida corre naturalmente nesses extractos de Paris, anos 1920-30, a julgar pelas indumentárias e veículos usados. O trânsito flui com normalidade na Avenue de l´opéra. O sol rompe a frágil fisionomia das nuvens na Place de la Madeleine. Há um furor sintomático de almas e máquinas contornando a Place de la Bastille, sob a indiferença mortal do Génio da Liberdade e do tempo indolor. Mas no cruzamento entre o Boulevard Montmartre e a rua com o mesmo nome vê-se um grupo de pessoas que teima em redor de uma carruagem de eléctrico descarrilada e um homem de chapéu provavelmente inanimado, estendido no chão.
Peço a Charles Dimanche, o homem por detrás do terrível projector, que escolha a perspectiva de um qualquer espectador próximo do acidente e me infiltre essa realidade. Dimanche é-me fiel. Sempre o foi. Um segundo depois estou em Paris. Com bigode, traje da época, vida própria e uma enorme apreensão. De facto, há um homem de chapéu, caído, a sangrar. Ao meu lado, uma confusão de figurantes ardem de pavor e curiosidade. O condutor do eléctrico parece ser aquele homem que se acocorou a um canto, os punhos fechados contra o queixo, o suor caindo-lhe pela testa pálida e os olhos esmagados pelo pudor geral. Na encruzilhada das vozes e dos ruídos da cidade percebo que o socorro está prestes a chegar.
De repente, sinto que o meu francês se apurou e uma mão apertar o meu braço. Viro-me e vejo um homem de olhos muito negros, com um bigode pequeno e educado: “vamos Dupin, assim vamos chegar muito tarde!” Não tive tempo sequer de me manifestar. Juan Desiderium Juan (soube o nome dele mais tarde) levou-me pelo braço, falava um francês consagrado, e não admitia uma explicação. Pelo caminho gritei e tentei libertar-me. Fiz de tudo para chamar a atenção de Dimanche, que do outro lado da realidade – tenho a certeza –, se divertia com a minha maravilhosa intrusão. Nada. Nem Dimanche, nem as autoridades locais e temporais faziam nada. Continuei assim, sacudido por Juan, até às portas do Sacré-Coeur.
Tinha visto durante o percurso, pelo reflexo nos escaparates, que estava obsessivamente bem vestido, como um derradeiro atleta da celebração. Quando cheguei à porta da igreja os convidados amontoavam-se. As reticências começaram a ser iludidas pelos factos. Já não tinha dúvidas. Era o dia do meu casamento. E eu estava muito longe de casa. O homem que me raptava devia de ser o meu padrinho, escolhido com a nobreza com que se escolhem os padrinhos e sem muita paciência para os meus subterfúgios lunáticos. Largou-me à entrada e depois desapareceu. As abóbadas ao som dos lustres dançavam. Pelo corredor central da nave central um arrepio emoldurou-me a convicção e levou-me rapidamente ao altar. A igreja estava cheia de cúmplices e de cânticos. Esperei alguns momentos sem saber que esperava. Quando, por fim, me virei para trás, Christine, vestida de noiva, estava já ao meu lado. A sua beleza transitava para os meus olhos como uma infecção abissal. O padre entrou em cena e deu início à cerimónia. Fiz-me hirto, sincero, impecável. Estava a acorrentar-me devagar. Os anéis foram trocados. No momento de confundirmos os lábios, Christine esfumou-se numa existência vã. E tudo tinha desaparecido da sua tenaz ostentação. A sala voltara a ser escura e solícita, com cadeiras vazias alinhadas na direcção de uma Paris projectada sobre um descampado promissor. As sórdidas gargalhadas de Dimanche, ao fundo, refizeram o mundo depois.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Deboração




Débora leva uma maçã à boca, morde-a lentamente, até obter a harmonia perfeita, o reino que existe algures entre os crimes do sabor e a alegria dos dentes reencontrados na paz, e depois, ainda a mastigar, diz-me que a vida é uma perda preciosa, como certas variedades muito raras de diamantes, descobertos no Espaço por um náufrago incapaz de regressar às suas razões primordiais.
Eu fumo a única forma de inocência plausível na retórica pobre de um cigarro. A minha perspicácia está longe de ser essencial. Não tenho como dizer-lhe que não encontro palavras. O Inverno, lá fora, emoldura-nos o tempo e o alcance. Que alcance? O meu quarto é pequeno e fica facilmente empestado de fumo e interrogações que se aproveitam dos cabelos emaranhados do fumo para resistir ao silêncio que subitamente se instalou nas têmporas da dissolução. Débora está quase deitada na cama, o lençol cobre-a como um vestido improvisado, sem fim nem refutações. Eu estou nu, sentado na orla da cama. Fizemos sexo com muita miséria e aflição, apenas há alguns minutos atrás. Ela não fuma. Rói as unhas, morde maçãs. Está terrivelmente equilibrada. Sabe que as unhas, tal como as maçãs, mais tarde ou mais cedo, cairão. São exemplos de perdas preciosas, amplamente desirmanadas. Ela própria é uma perda preciosa. Os seus olhos denunciam agora a coroação de um ser total banhando-se na banalidade. É meia-noite no meu drama. E eu, sem uma só interjeição, continuo a fumar.
A chuva contra os vidros ajuda-me a formar uma fala. Mas essa fala são muitas e não me sai. Fico preso naquelas “perdas preciosas” de que Débora parece ter a tutela e a explicação. Fico preso nos cabelos desgrenhados do fumo, nas interrogações decapitadas das minhas eternas vacilações e continuo a fumar. A chuva cose no estertor do silêncio as crias infecundas da inverosimilhança. Eu esmago no cinzeiro o cigarro. Débora termina a maçã. O corpo dela procura uma nova protecção: um pai ausente para os seus aforismos bestiais. As roupas estão espalhadas um pouco por todo o lado, mas em poucos segundos ela regride a um estado anterior ao desejo e aparece completamente vestida à minha frente a perguntar-me secamente se a posso acompanhar até à porta, porque sempre está interessada nos mistérios declarados do amanhã. Amanhã? O que é o amanhã? O amor não suporta o amanhã. Amanhã é um filho deficiente de todas estas horas desencontradas. Pouco depois, ouve-se a presença falhar e a porta da rua a bater determinada. A chuva sustém, por alguns momentos, a respiração. O silêncio organiza-se em pequenos núcleos de derrota e milagre. Na rádio, Leonard incendeia a madrugada.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Tristeza apocalíptica




Considerada a última forma de transcendência sobre a Terra, a tristeza era cada vez mais apreciada pelos países ricos. Em 2075, por exemplo, chegavam diariamente a Estocolmo inúmeros biochips, muito fáceis de implantar, carregados de tristeza. O problema era que o preço desses pequenos cursos biónicos de tristeza era também muito variável. Desde o kit de tristeza foleira ao de tristeza sublime, havia uma gradação infinita de tipos de tristeza disponíveis, segundo a mentalidade económica de cada um naquele momento. Nunca é demais recordar que em 2075 a riqueza de cada pessoa era já calculada em dias, não em meses ou anos.
As assimetrias revelaram-se rapidamente cruéis: havia gente momentaneamente muito rica que usurpava do tipo de tristeza sublime e desbaratava-a completamente. E havia o contrário. Gente que só tinha posses para adquirir um certo tipo de tristeza foleira e como organicamente exigia um tipo de tristeza superior ficava a ressacar num mundo de opacidade, riso hiper-real e indiferença.
Não foi preciso muito tempo para que alastrassem os roubos e as falsificações, a copiosa venda de tristeza no mercado-negro, os simulacros quase perfeitos. A cópia podia superar e até corrigir o original, mas nunca era um clone completo. O reflexo autêntico perdia-se no ADN estrangeiro e aquela que já tinha sido um dia a tristeza de alguém (ou definitivamente para alguém) jamais se adaptaria a 100% numa realidade genética paralela.
Foram relatados muitos casos de depressão desmedida, tristeza tirânica, apagamento iminente. Cada país cedeu gentilmente uma parte proporcional do seu território para criar campos de concentração para os sobreviventes. Uma vez isolados, estes mantinham com o resto da sociedade uma veloz impressão homogénea. Uma portentosa simulação do real operava muito perto, com centenas de actores e funcionários contratados que lutavam diariamente pela verosimilhança das conveniências e rotinas. Claro que havia alguns inquietos que eram policiados de muito perto pelo zelo extremo das medidas. Especialmente para esses foram criados mais chips com soluções de amnésia ou potentes engodos pacifistas, até que um dos inquietos resolveu nascer resistente e permanecer. E contou a já não sei quem o porquê do brilho sinistro das suas vidas.
A consciencialização ganhou tanta fama como um vírus. Ao saber-me perdido, reuni longas horas com os meus melhores engenheiros e pedi que me desenhassem um novo chip, um chip que me faria experimentar interminavelmente a sensação do suicídio, alterando-me o código genético, para assim poder escapar à total deposição sem qualquer arroubo de fuga, retractação ou arrependimento. Mas, pela primeira vez, senti o sabor do chip alheio, o cheiro da tecnologia previamente investida, o hálito da traição insurgente, e agora sou eu quem está do lado de lá da tristeza a contar tudo isto, sem lágrimas, para ninguém.

sexta-feira, 2 de março de 2012

O estranho caso de Diamanda Déspota



Diamanda Déspota tem 10 anos e é uma criança erudita. A super-erudição infantil é um tipo muito raro de sobredotação que exclui quaisquer propósitos vigentes no equilíbrio. A intolerância ao mundo enfatuado dos adultos é um dos sintomas mais salientes. A essa intolerância severa o cérebro organiza uma série de démarches para que o doente continue a viver apesar de todos os pressupostos terrestres absolutistas. No caso de Diamanda, é muito notória a inversão apocalíptica. Virar o mundo ao contrário é uma das respostas possíveis num universo onde o que é sentido como essencial não atende. Diamanda atira uma maçã ao ar e ela recusa-se a cair. “Para compensar, a lua aproxima-se da Terra a uma velocidade relativamente aflitiva”, diz ela, com um sorriso congelado e escorregadio, os lábios pintados de vermelho vivo, a cauda da inocência a arder.
No seu contra-mundo, as pombas revoluteiam como moscas à volta de lâmpadas acesas, que iluminam quartos minúsculos, onde só cabe a inconveniência cega e dois ou três desejos sem perfil. É normal, por exemplo, encontrar crianças destas a brincar com as suas novas mutações e incongruências, que a sua aprendizagem supérflua promove e exime, como se fossem brinquedos trágicos e fiéis. “Os adultos, diz Diamanda, têm o estranho hábito de baterem com a cabeça contra as paredes, e ainda por cima, com uma força francamente superior àquela que tinham inicialmente previsto.”

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Kelda Ky



Tenho uma tendência para me apaixonar por mulheres inacessíveis de nascença e infinitamente desencontradas. Por exemplo: Kelda Ky.
Kelda vive em 2334. É natural dos Estados Oníricos da América e estrangeira em toda a parte. Tem uma profissão que nem ela própria sabe muito bem decifrar. Comunicamos há já muito tempo através da rede intertemporal. Os seus hábitos parecem-me sempre corruptos quando os contemplo à luz do meu século cheio de desgraças e vaidade. Ela, pelo contrário, tem piedade do meu tempo e das minhas circunstâncias, chegando mesmo a render-se ao riso e à informalidade quando lhe falo das nossas concepções e obstáculos gerais.
Quando lhe peço que me subtraia do futuro toda essa dimensão amorfa e desonesta de escuridão falsificada, ela entorna a conversa, desconecta-se da verdade, ou então pura e simplesmente recusa-se a prestar qualquer esclarecimento, alegando com isso poder sacrificar irremediavelmente os delicados circuitos temporais, favorecer a inconsequência e ilustrar a descontinuidade.
Apesar de tudo, ela vai-me contando como é a vida muito depois de amanhã. Kelda não tem um só corpo. Ela veste pelo menos um corpo por dia, como nós peças de roupa vulgares. Em 2334, a meteorologia perdeu a noção das conveniências e o clima muda de minuto a minuto, desenrolando as piores ansiedades e catástrofes. O planeta, tal como o conhecemos, não existe: “O espaço concreto desapareceu. Vivemos todos mergulhados num oceano de nada, em perpétuas penínsulas de mudança”.
Por vezes é muito difícil seguir os seus raciocínios, elaborar contra eles uma espada verbal. Kelda pede-me mil desculpas e experimenta reformular: “A morte quis anexar-nos.”
Eu sinto uma bela incompreensão por tudo o que ela diz, por tudo o que ela sabe, por tudo aquilo de que ela é capaz e incapaz. A submissão de que é feito o amor no meu tempo não me permite senão incompreendê-la e amá-la ainda mais. A sua inacessibilidade chega-me por vagas, arrepios e sintagmas adverbiais, normalmente muito tarde para que possa pôr um ponto final nesta relação e exigir de Kelda uma correspondência verdadeiramente presencial, uma responsabilidade incorporada, já lhe confessei que quero as vísceras do seu eco no meu âmbito, o carimbo no passaporte para a viagem à abdicação, mas Kelda ignora as cócegas da minha vontade e volta a entornar a conversa, a desconectar-se da verdade, a falar dos Estados Oníricos da América, do seu século e do imperialismo sórdido do tempo que nunca virá.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

A filha da lavadeira



A filha da lavadeira de Álvaro de Campos nunca foi feliz. Casou, já tardiamente, com um proprietário rural, não fez mais do que lavar, também ela, as fadigas alheias da vida, castigando as nódoas cada vez com menos coragem e detergente e perdeu a oportunidade de casar com alguém que um dia a mencionara tristemente num poema e erguera uma conjectura tão influente e decisiva que lhe havia roubado para sempre o sol e o sorriso.
Alguma insubordinação espontânea de carácter e maus humores intra-uterinos fizeram com que parisse apenas 4 filhos, dois dos quais morreriam à nascença atacados por uma estirpe muito rara de F.V.E. (Falta de Vontade de Existir). Carolina e Ezequiel, os sobreviventes, viveram apenas e respectivamente 28 e 33 anos. A primeira porque se debruçou demasiado das margens das dificuldades, depois de ter contemplado o seu rosto reflectido nas águas de um destino vazio. O segundo, durante a guerra inverosímil que travava diariamente dentro da sua embotada consciência.
Lídia Carolina Gentil, a lavadeira, e Diamantino Jorge Ezequiel, o marido, foram um casal exemplarmente ineficaz e infeliz. As agressões motivadas pelo mau vinho de Diamantino consolidavam um amor paupérrimo, com notas de humilhação consentida, restos de lama nas esperanças autênticas e óbvias divergências no seu melhor traje de domingo.
Um dia, ao fim de mais uma jornada, ao desabafar com uma amiga, quando o vértice do tempo tocava os seus 74 anos e 145 dias, Lídia manifestou a vontade de voltar a Lisboa, porque lhe faltava o cheiro do tabaco suado e a voz de um misterioso homem imiscuído. Três dias depois, as páginas mais negras dos jornais revelavam a sua fotografia.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Sonho de Flaubert



Estava diante de uma porta fechada, tão nu como uma mão sobre uma cicatriz. Tinha a sensação de ter acabado de nascer naquele instante, não sabia se por graça ou infortúnio. Estava no exterior de tudo, parecia-lhe. Ouvia passos e música do lado de lá da porta, risos de sucesso, brindes ambiciosos e choque de perfis. A partir daí: nada. Apenas o mapa infecundo do céu, com graves estrelas escondidas. A toda a volta a noite vestida com um escafandro solene. E ao longe, muito ao longe, o triplo latido de um qualquer cérbero de província cruzado com um demónio-da-tasmânia sem dentes.
Começava a pesar-lhe a trágica responsabilidade de existir do lado de fora de tudo. Por detrás da porta, entretanto, continuava a cheirar a bailado e demografia: gente, provavelmente muita gente, homens e mulheres escoltados pela música, pelo suor, pelos perfumes, pelo brilho oblíquo das suas presenças tangíveis, provavelmente acendendo aqui e ali pequenos focos de intolerância e desejo. Determinado a perseguir os ruídos daquele enredo omisso, Gustave agarrou a música pelos cabelos e experimentou adivinhar o sexo dos habitantes pelo rumor dos passos perdidos, memorizar os cadáveres das palavras que ia compreendendo a custo, esmagadas no caos compacto dos volumes que se erguiam e formavam uma casa, uma imensa casa, afinal, (e, sendo assim, talvez estivesse prevista uma excepção ao interdito, aberta uma janela nas suas partes mais íntimas).
Gustave ouvia o corpo infinitamente reconstituído do vidro dos copos por onde os outros brindavam e bebiam os olhares de todos e a tentação de ninguém, e começava a desenhar, ainda que guiado apenas pela leitura daquilo que permanecia, a radiografia de uma festa, para a qual não tinha a menor lembrança de ter sido mortalmente persuadido. Estava prestes a compreender a sua intrusão e o papel da sua intrusão na ordem desconexa do mundo, quando se encheu de coragem e significado e resolveu tocar à campainha.
Os segundos que passaram entre esse seu último gesto e o abrir enigmático da porta praticamente não existiram. A porta abriu-se. Ao longe, distinguiu uma amálgama de corpos eufóricos e esbaforidos que se debatiam entre centenas de livros abertos e dispersos pelo chão. Havia pelo menos uma tonelada de nudez envolvida no centro da sala e uma pequena plateia de gente terrivelmente reconhecível, oriunda de todos os tempos e origens, assistia ao espectáculo com a luz acesa do seu zelo.
Uma mulher de ligas, tacão alto, um bosque líquenes no púbis e lábios a arder, com restos de espuma e serpentinas enfeitiçando-lhe a pele, conseguiu sair do tumulto, dirigiu-se à porta e disse-lhe ainda um pouco entorpecida:
- Seja bem-vindo, senhor Flaubert. Chegou mesmo a tempo de me criar e de me destruir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Linda Helmut Falls



Linda Helmut Falls aproxima a sua arte do fogo gelado do quotidiano e desloca-se sobre a incompreensão. Ela sofre de um gravíssimo transtorno de ansiedade e a qualquer momento podem surgir no seu corpo manifestações mais ou menos caóticas de uma crise anunciada, óbvios sinais de derrota homeostática transformados em quistos, apêndices, edemas, montículos, tentáculos, feridas abertas e inadvertidas cicatrizes imperiais, que nos chocam mais pelo modo como assinalam a sua supremacia arbitrária do que propriamente pela sua complacência irreal.
Há dias, em que os efeitos empreendidos pelas somatizações no seu corpo são tão radicais que ela acorda com os olhos nos joelhos, um minúsculo braço definhado nos lombares, dois dedos implantados na nuca de forma perfeitamente extravagante, unhas encravadas no desejo, pestanas no palato, uma vagina suada na palma da mão e uma boca na planta dos pés, com os lábios vermelhos muito pintados, como que para marcar o caminho de volta ao estado normal.
Mas a aparatosa arte de Linda não vende. Os tempos mostram-se mais propícios a interrogá-la como uma curiosidade ou uma aberração e a crítica recusa-se a ver nesta amálgama de erupções e deformidades um grito mudo da inocência rebelada de uma mulher que, mais do que uma vítima da estranheza incapacitante, é uma artista involuntária da sua terrível condição.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Uma noite em Schadenfreude



Se um dia visitarem o país gelado da Inveja, não deixem de passar uma noite em Schadenfreude, uma pequena povoação nas margens do rio Nacht, conhecida pelo prazer mórbido que experimentam os seus habitantes ao constatarem os fracassos e as desgraças dos seus conterrâneos, tudo isto envolto numa atmosfera de festa, névoa e ingenuidade etnográfica.
Não se sabe ao certo quando é que esta tradição irrompeu do manancial de lendas que assombram desde tempos imemoriais a região. Contam os antigos que um dia um forasteiro, ao passar pela cidade, perdeu o controlo do carro e atropelou uma criança sobrenatural. A tremer, com o coração estrangulado, o forasteiro saiu cambaleante do carro e aproximou-se da criança para a tentar socorrer e salvar. Ao vê-la resignada à excepção, desistida e triturada, o homem começou a rir sem parar, o que mais tarde viria a prejudicar seriamente a audição das suas declarações em tribunal, mas que, por outro lado, lhe valeu um lugar amplo e sossegado num asilo de montanha, ao invés das minúsculas cloacas prisionais. A partir desse dia, Schadenfreude ficou assombrada pelo fantasma do forasteiro e da criança sobrenatural. Um pouco por toda a cidade, as pessoas começaram por se sentir atraídas pelo sofrimento ou pela infelicidade do outro. No início sorriam, quando alguém tropeçava e caia ao chão. Achavam graça. Mas depois, a coisa complicou-se e vieram as gargalhadas estridentes e as faíscas pelos olhos quando acontecia alguém adoecer, perder alguém querido, ou o emprego, ou a liberdade, ser roubado e violentado ou sofrer algum tipo de consternação particular.
Estudos mais recentes, no entanto, apoiados em técnicas imagiológicas avançadas, relatam a activação dos centros de recompensa cerebrais quando um qualquer habitante de Schadenfreude recebe a notícia de que um seu conterrâneo sofreu algum tipo de mal ou calamidade. A produção de oxitocina também aumenta significativamente, confirmam os mesmos resultados, em particular se o sofrimento alheio for prolongado ou encerrar em si a semente da ruína total. Em casos isolados, observou-se mesmo períodos de excitação sexual extemporânea, episódios de euforia atípica e fanatismo paradoxal em habitantes mais propensos e sentimentais.
O professor Adolf Von Stein, médico psiquiatra e eminente investigador na área, regente da cadeira de Sentimentos e Comportamentos Exorbitantes e Colossais na Universidade Central de Schadenfreude, vai mais longe quando afirma haver toda uma estrutura montada em segredo por alguns cidadãos para levarem a cabo, de uma forma ainda mais eficaz e organizada, a sua insaciável sede de gozo sacrificial.
“O povo de Schadenfreude – esclarece Von Stein – para além de macabro é também excepcionalmente criativo e passional. Sabemos que existem pessoas nesta cidade que são verdadeiros adeptos da tortura galante. Normalmente é gente com grande poder financeiro e prestígio intelectual, que se diverte a montar ciladas, arquitectar finíssimas teias originais, com o fim de conduzir terceiros a fins trágicos e monumentais, tudo isso para gáudio instantâneo e pessoal.
Ainda há bem pouco tempo, pude acompanhar a história de um homem que, após ter tomado conhecimento de que uma mulher da cidade nutria por ele um amor sincero e desinteressado, resolveu iniciar um processo de apropriação selvagem e tirar partido do sentimento desigual. Esse homem investiu uma soma avultada escrevendo, encenando e realizando um conto de fadas exemplar que não demoraria mais do que 12 horas até se autodestruir como as mensagens de alarme ou um sonho sobressaltado. O kit da sua maquinação incluía um jantar romântico, um anel de noivado e uma declaração faustosa e nupcial que culminaria numa noite de amor passada num palácio alugado que, para efeitos hiperbólicos de indução, seria para todos os efeitos o futuro lar dos amantes e da sua prole numerosa e iluminada.
O júbilo desta mulher atingiu durante as horas subsequentes níveis insuspeitos de plenitude e bem-estar, mas, no dia seguinte, apareceu morta, mutilada, à porta de um prostíbulo abandonado, tatuada pela indecência e pelo escárnio, com restos de gargalhadas presos aos cabelos desgrenhados, pousada numa espécie de imaturidade secular.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Jean-Paul Mirage



O meu verdadeiro nome é Jean-Paul Mirage. Tenho 33 anos, sou francês e não pertenço a este século, nem tenho como digna a minha morada. Um erro cósmico, que a ciência conserva no capítulo das doenças sem fundo e a mística não perscruta por pudor ou inaptidão natural, tem-me varrido os dias como um naufrágio. E depois, a vida que me coube, ainda que desafogada de sortes que a outros pareceriam inexpugnáveis, não me permite ser, apenas durar.
Um guião altamente estruturado coloca a voz de alguém nos meus lábios. As palavras, que serpenteiam ao longo do espírito da voz, como uma espinha dorsal, são-me sussurradas. E o real nos meus olhos ferve a 1000º C e sabe-me a aguarrás.
Tenho suportado o corpo e o espírito de Andrés Salvaje durante todos estes anos, com particular complacência e até alguma ingenuidade. Mas nunca o percurso de vida de Andrés me disse nada. A sua vida é uma eterna promessa da qual foram extirpados os órgãos sexuais da esperança e não há nada de muito interessante para fazer dentro de um corpo que não é nosso, senão trabalhar continuamente para o vencer, ainda que saibamos de véspera a nossa insignificância.
Poderia estar horas a contar-vos coisas da minha vida verdadeira, que já aconteceu (e agora é retransmitida aos soluços e aos lapsos), entre 23 Janeiro de 1912 e 14 de Março de 1954, como o comboio que perdemos por um século ou por um instante. Eu vivia em Paris e amava Isabelle Orange. O mundo ainda não tinha acabado. Não demos pela ocupação da cidade, tal era a nossa azáfama. Éramos como feridas contrárias à cicatrização convencional.
Deixei Isabelle e os amigos e Paris e o meu século, apesar de tudo estável, e rendi-me ao desconforto da contemporaneidade, como um gato vadio e faminto que dorme com um esqueleto de peixe atravessado na garganta, no sofá elegante de um matadouro municipal. Como se tivesse de responder constantemente a um anúncio de emprego no caos, fui contratado para proteger e persuadir Andrés Salvaje da sua identidade intacta.
No dia em que Andrés saiba da minha existência, enlouquecerá. É, por isso, melhor que este texto nunca seja publicado.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Contágio Directo



Abro a minha boca diante da tua para favorecer o contágio, mas, sobretudo, para que se cumpra esse gesto de solidariedade radical com o desconhecido. É possível que amanhã de manhã já chegue a febre. Durante a noite os correios e os vírus trabalham melhor e entre andaimes e arrepios já vislumbro daqui uma casa na prostração e uma árvore frondosa, ao lado, cheia de pássaros e chilreios como uma dor de cabeça sublime.
Depois, cairei na cama também. Ao teu lado, rezando para que a coisa se complique. Sonhando que te amo à sombra das pneumonias em flor, à nossa volta a expectoração da Primavera dos vencidos, o ar infestado de secreções e a fadiga de sibilos, a minha mão suada aberta no teu sexo, com o meu dedo médio no melhor da tua vida e o índice de mortalidade altíssimo.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O náufrago



O meu grito não surte efeito numa lógica isolada. Estou só, sou um pedaço de medo rodeado de sangue por todos os lados, e vivo num tempo invertebrado, no inferno das convenções: hoje é amanhã, amanhã será ontem e ontem foi nunca mais, mas nem sempre é assim e nem sempre será.
Não é bom, sobretudo para um náufrago, que nos troquem as memórias e as esperanças. As memórias não são apenas o artesanato da idade, mas as proposições precedentes, sem as quais seria absurdo e impensável a existência das imediatas, como as contas na constituição de um colar, os átomos na eficiência da matéria, a unidade na casa da integração. E as esperanças vivem da manhã da novidade, mesmo quando estamos matematicamente condenados, como eu. E se a novidade se repete já não é novidade. É, quando muito, uma representação congelada da novidade, ou um fóssil da novidade sem interesse arqueológico e sem qualquer consequência memoriosa válida na indústria vital.
Porque se, tal como tenho vindo a constatar, hoje é amanhã, então houve um incompreensível lapso entre ontem e hoje. Uma espécie de dia impostor interpôs-se entre ontem e hoje, negando-me o acesso ao tempo (ou à realidade?) em tempo real. E se, por outro lado, amanhã será ontem, então tudo se repete e eu sou produto de uma pálida eternidade sem contraste, prisioneiro de uma falácia ou de uma grave doença temporal, que trará consigo a degenerescência de tudo, inclusive, deste relato.
Mas, pior do que tudo, é saber que ontem foi nunca mais.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O senhor sentado ao fundo



O vinho é uma hipérbole da vida e o senhor sentado ao fundo, com chapéu e fato de asas negro, já bebeu, pelo menos, 3 hipérboles e 2 digestivos. O café está um pouco escuro e confuso, mas reconhecemos-lhe o talento: é o único café que não permite senão clientes que dominem Buenos Aires, essa Paris com personalidade borderline e elegância em ruinas, assim como tudo o que povoava a fé dessa cidade nos exultantes primórdios do século XX.
O excesso ainda não foi condenado neste café. Afixado na porta pude ler: “Abierto el primer café para uso exclusivo de quien todavía viva en el alba del siglo XX”. Mal entrei, assistia-se ao fim de um tango dançado no seu próprio sumo, com dois rivais como protagonistas, feridos pelas navalhas do seu pudor solene.
Por vezes, os tigres de Borges assomavam à jaula da promessa, com um rugido proveniente dos corpos crus dos bailarinos que se friccionavam na madrugada da sua técnica e à flor dos seus papéis. Havia dezenas de clientes entorpecidos pela técnica dos bailarinos e a sensação de sauna no tempo era tremenda, muito fumo, vozes carnívoras, tudo isso aumentava em mim o efeito estrangeiro que eu queria que nunca tivesse existido quando naquela noite entrei naquele café e tudo aconteceu.
Depois de tentar o mais possível disfarçar-me de fantasma e ignorar a lava dos olhos vivos apontados para mim, dirige-me para uma mesa perto da do tal senhor com chapéu e fato de asas negro e pouco depois fiz sinal ao camarero que me trouxesse a minha primeira hipérbole desse dia.
O par de bailarinos deixava o lugar e despedia-se e o ruído do café tornou-se quase obsceno. Algumas pessoas levantaram-se, houve muitas mesas e cadeiras que se arrastaram e toda a gente olhava agora para mim. A música tinha acabado como uma fonte esterilizada pelos velhos costumes da estranheza sem limites e o silêncio aplicado à expectativa misturava-se nos rostos ainda mais entorpecidos do que da primeira vez.
Enquanto esperava pelo meu copo de vinho, reparei que o homem de chapéu e fato de asas negro também tinha descolado os olhos do que escrevia e olhava atentamente para mim. Não sabendo o que fazer, sorri e pedi-lhe fuego, com gentileza.
Doze segundos depois, tudo explodia.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Trastornos de la percepción



Guillermo Guel (Barcelona, 1967) sofre de um transtorno raro da percepção: a “Síndrome del espejo disímil”, sendo a “Síndrome do reflexo díspar” a tradução oficial em português. Tudo o que Guillermo Guel capta com os seus sentidos reflecte o real, mas através de uma breve deslocação, seguindo-se como que um pequeno sismo ou clímax, e, consequentemente, uma apropriação parcial e delirante, mais ou menos aleatória e sinistra, do objecto, ou dos objectos sentidos. Por exemplo: uma maçã. Guel reconhece facilmente a maçã como maçã (manzana em espanhol), mas chama-lhe masanez. A língua é das primeiras coisas a ser comovida. Uma dislexia astuta e expedita cala-lhe a manzana convencional e alarma-lhe a intrépida masanez; uma masanez pronunciada como um espanhol comum a pronunciaria, se tivesse mesmo de pronunciar masanez.
E depois é o sabor da maçã. Guel geometriza todos os sabores e dá-lhes ângulos e coordenadas, nem sempre legíveis num plano ou num gráfico simples. Também para ele uma maçã não tem bem o sabor de uma maçã: uma confortável percentagem do sabor real da maçã é inventada por Guel. E as linhas com que se fazem uma maçã foram expostas a uma manobra terrível: ao longe são as linhas de uma maçã; ao perto são abstracções convulsivas. Parecem as mesmas linhas da flor que a criança caótica de Almada Negreiros representou com espanto e talento, quando lhe pediram que desenhasse uma flor. Lembram-se? A criança caótica de Negreiros foi inspirar-se primeiro ao caos e ao cosmos (onde, que se saiba, não há flores) para responder ao pedido.
Lembram-se?, pergunta-nos agora Guel, lembram-se da criança caótica do Almada Negreiros?, pois bem, essa criança sou eu. E continua-nos a contar parte da sua vida, agora em Madrid (Madryd, segundo Guel), onde se diverte a dar conferências sobre os seus desvios perceptivos, aplicados de vez ao verdadeiro entretenimento.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Os aborrecidos



Éramos fervorosos adeptos do submundo. Vítimas do tédio e da anomia que abraçava o planeta. Não fazíamos nada, excepto vadiar por objectivos. Tinha-nos sido dada a oportunidade da ironia, a simpatia pelo desprezo, o dom para nos desviarmos do imprescindível. E, claro, erámos vítimas do que escolhíamos ler. Éramos o género de vítimas que espreguiçam o seu martírio de papel ao sol de Inverno e tomam café e fumam cigarros e queimam as tardes a ler livros. Éramos ociosos de persianas corridas, atitudes de álcool e mp3. Discretos extraterrestres vestidos por dentro de Channel, Lovecraft e labirintos.

Dizer que odiávamos a actualidade é dizer pouco. A actualidade excitava-nos, e excitava-nos porque, tecnicamente, era tudo o que tínhamos. Mas a leitura compulsiva de autores que reagiram ferozmente contra ela, transportava as nossas miseráveis idealizações para uma espécie de legítimo nazismo performativo, que os outros deveriam conhecer, por sua vez, enquanto vítimas ainda mais imperfeitas, precisamente por dispensarem a consciência disso.

Quando nos sentíamos assim, inebriados por uma vingança veloz que nos rasgava o apelo pelo interdito, tentávamos dominar a fúria e recorrer a estratégias evasivas, deixando a noite inventar o excesso. Normalmente, os planos não saíam do papel e tudo permanecia. Não sei como pudemos pôr em prática um plano tão arriscado como aquele.

A partir da rendição da preguiça aos autores do nosso interesse, o tédio tinha arriscado superar-se a si mesmo e congeminar um crime. As nossas tardes explodiam naquilo que continuávamos a ler. Comprámos um caderno e escrevíamos. Não tínhamos à disposição mais do que alguns amigos em comum que também pareciam equilibristas rotineiros, sem nada mais a oferecer do que a sua bebedeira instituída, seguida de uma tristeza egoísta e interesseira, posta ao serviço da sua crescente decadência.

Não foi muito difícil juntá-los todos na casa de um deles, a pretexto de uma qualquer comemoração peregrina. Mergulhados num sadismo que dialogava com a tradição de uma forma inédita, nós fomos criando o guião para aquela noite, as cenas, a forma como cada um deles deveria assumir que se despedia.

E porque a humilhação é a mais maravilhosa maquilhagem da inveja, aquela noite durou dias, e aqueles dias foram passados assim, até que a polícia apareceu.