sexta-feira, 30 de setembro de 2011

María Valencia Insignia



María Valencia Insignia. O corpo condecorado de sal. Não demorou muito. Não demora muito, normalmente. As certezas têm mil patas e asas. As certezas são insectos a sul de todas as eventualidades possíveis. As certezas matam um homem em menos de um hino, que é a partícula de tempo imediatamente inferior ao instante abissal. E a evidência viaja à velocidade da luz. E o sal deposita-se no fundo, tão insolúvel e estéril como o enigma do olhar e o rosto aflito, a pose pretensamente indelével, pouca ou nenhuma maquilhagem visível, não fossem os demónios às avessas e às cegas conferir ao número um tom difícil, negro e difícil, com as secreções todas em teu poder, María, com a facilidade com que encarnaste o complemento directo numa frase onde o sujeito era a vítima. E eu, casualmente, o vilão.
Amar é defender a tese da nudez antes mesmo de esta ser vista. Numa rua deserta, alguém apregoa o impossível. É cálculo divinatório cheio de probabilidades de falhar, mas sem nenhuma inveja ou medo do dia seguinte. É humano, como as fezes. Mas é também eco da distância e a soma mais bela que se conhece de insucessos astrofísicos. Por isso eu não respeitei o teu credo, María. E depois de termos arrumado os teus estorvos e os meus, fomos brincar para onde a culpa beija a mais anaeróbia mentira.
Nus, necessariamente nus, em Marienbad.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Realidade



Enquanto o Verão termina, com a ternura patológica de uma amante sem braços, ouço contarem-me a história de um antigo rei louco que fabricava realidade. Parece que à medida que ia enlouquecendo mais e mais, o rei adquiria também mais poder, conhecimento, ouro, sábios e laboratórios sofisticados, o que lhe adiava consequentemente a queda abrupta na imbecilidade total. Mas nunca chegava a curar-se. O saldo era sempre positivo para o lado da enfermidade e o poder, o conhecimento, o ouro, os sábios e os laboratórios sofisticados detinham-se invariavelmente diante de cada crise do monarca.
Um dia, o rei tornou-se dono do planeta, governador da natureza e depositário do acaso, e a realidade deixou de ser um propósito real.

domingo, 18 de setembro de 2011

Vlad e Muriel



O paradoxo é conhecido. Pode uma força constante e insubestimável suscitar algum tipo de efeito físico num objecto infinitamente inamovível? Vlad e Muriel acreditavam que sim. Estavam espontaneamente perdidos numa floresta de convenções, arame farpado e vigilância sublime, a noite era como um mapa que mudasse ao segundo de rosto, sentido e leituras possíveis, mas alguma coisa os levava a que permanecessem ali, na inexactidão primordial de uma justificação vazia, debaixo de uma queda de água negra formada pela irresolução, pelos temíveis ventos que sopram nos arredores do livre-arbítrio e pela recompensa romântica de se julgarem atravessados pela singularidade de um reino.
Apesar dos limites muito pouco generosos da floresta, o seu desencontro tornou-se rapidamente crónico e era explicado, na época, por uma inevitabilidade reactiva: enquanto Vlad pensava deslocar-se de X para Y, Muriel ficava temporiamente incapaz de imaginar Y e vice-versa, tornando impossível a simultaneidade espacial e a deslocação ainda que microscópica da sua desejada intersecção no permitido.
As horas, os dias, as semanas e os meses passaram e nem Vlad nem Muriel viram mais a luz do dia, nem de si próprios obtiveram o espanto que a visão e o tacto do outro segregam, nem por alguma qualquer probabilidade mínima, num ponto onde o inverosímil negoceia com uma pequena distracção da certeza. Nada. Mas eles continuavam ali. À procura de uma resposta solúvel nos seus zero por cento. A fabricar o veneno e o antídoto mais potentes, as jogadas mais nuas e vestidas, habituados cada vez mais a não serem. Foi quando o paradoxo desapareceu.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Museu de História Artificial


Um homem acorda, abre as portas do seu museu de História Artificial. Dirige-se ao quadro da luz. Acende mais de um bilião de lâmpadas com o sorriso. O museu ilumina-se. O homem ilumina-se. Reconhece o cenário da noite anterior. Por toda a sala, o seu quarto é projectado de uma forma muito vívida, mas sem muitos dos pormenores com que um olhar exterior poderia articular uma outra impressão. Para ter acesso a tudo, para obter a versão integral e em HD da sua noite anterior, sem as falhas a que normalmente está habituado que a sua memória o limite, este homem deveria ter dormido mais, bebido menos, e sobretudo não podia ter sucumbido tão cedo ao arrependimento, que o entregou imediatamente ao mais imerecido declínio.
Ao fundo da sala, uma cama alvoraçada, como as chamas quando o fogo é forte e egoísta. A curiosidade é o telescópio instantâneo da vontade e a inconveniência de olhar de si para si, do seu eu mais velho para o seu eu mais novo, traduziu-se numa aproximação lenta ao leito daquela morte pequenina. No segundo seguinte, vê-se a ele mesmo na cama com Romínika. A ondulação louca dos lençóis fez embaciar a objectiva. Uma pequena praia de nudistas é agora atingida pelo protagonismo de alguém que, do futuro, torna-se presente, extremamente presente, ao ponto de apontar a pistola aos dois e a decisão (também apontada, mas para si próprio) de se suicidar a seguir.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Sinais inflamatórios vários



Para a tua pergunta adesiva eu tinha a resposta inflamatória do âmago, um príncipe pardo na ponta da língua com uma proposta monumental, três ou quatro metros quadrados de sílabas que passado um segundo já nada significavam, a difícil manutenção do meu olhar precipitado enquanto falavas, falavas, como se falar fosse a única forma adequada de sustentação, de apaziguamento terrestre, de gravidade seleccionada, tu falavas e eu escondia-me atrás da reputação sólida das tuas palavras, deitado no divã da recepção, presente, mas atrás do diálogo, só para te ver falar, tirava o som do teu ser e ficava a ver-te falar, os lábios a mastigarem silêncios e realces (e a própria mudez artificial), os dedos que dançavam entre os dédalos e os privilégios do acaso, segurando um cigarro ainda intacto, os magníficos vitrais na abóbada de um gesto menos pensado, a grinalda do sopro que chegava, apesar da fonte inaudível, a tocar as minhas mais profundas convicções imorais.