sábado, 30 de julho de 2011

Bucareste



À falta de vampiros e adjectivos,
Bucareste dormia com a complacência
de uma vítima cercada pela sua pose mais bela.
Bucareste sonhava que era Estocolmo
sob a forma de síndrome, em Bucareste.
E que o nevoeiro, essa língua franca e letárgica,
latina, espessa, bífida, sempre adjacente ao brilho,
como os gatos à constatação da festa,
sempre tão desassossegadamente quieta,
para além do Dâmboviţa, banhava Bucareste.
Bucareste sonhava consigo em Bucareste,
mas era já demasiado tarde
para que se apercebesse de si,
consigo em Bucareste
e, por isso, não sonhava
bem consigo em Bucareste
mas com o reflexo de uma Paris
estacionária e raquítica.
De repente, é como que se dois desencontrados sofressem
a mesma esquina.
De repente, é como que se a vida fosse de facto difícil,
mas difícil com sabor a morango e baunilha,
difícil com tremendos trejeitos de alegre.
De repente, Paris desaparece. E só resta Budapeste.
De repente, os desencontrados acendem
tudo aquilo que os separa de tudo
aquilo que os separa de sempre. E friccionam a pele.
De repente, os prepúcios do acaso
sangram e rompem
desrespeitando completamente
a vulva do magnífico.

sábado, 23 de julho de 2011

Os desequilibristas



Admiro a arte menor dos desequilibristas.
Dão-lhes um rumo, um método, um fio
suficientemente largo para a passagem,
tão breve, da vida, tão breve,
mas mesmo assim eles ousam desafiar o fio,
eles promovem a estreiteza no máximo
da largura possível, eles imaginam,
por exemplo, 400 quilos sobre um fio,
um touro sobre um fio, por mais largo que seja,
cai na indisciplina
e na mais brutal transparência
e eles com tesouras no sorriso
celebram
a sua magnitude mínima.
Os desequilibristas endossam o mundo.
Precavêm-se da impossibilidade do paraíso.
Filhos da tontura, netos do improviso,
os desequilibristas aprendem a cair,
ensinam a cair, sem, no entanto, se deixarem levar
pela insalubre omnipresença da queda.
É que os desequilibristas caem noutra queda.
Aquela que origina sempre
novos desequilibristas
e quedas por vir.

sábado, 9 de julho de 2011

Carlos Klenner



A Singapura fica muito longe para quem não tem asas e passa o resto da sua vida numa história situada num único país, provavelmente inventado à pressa, por meras questões de timing editorial e enfoque estratégico. Ou então: a personagem secundária de um livro queixa-se do determinismo da diegese e bate às portas do capítulo errado, o único em que está viva e enterrada para sempre.
O autor, entretanto, dorme sobre a proposta de outros livros, novos temas. Ressona como quem faz poemas ou amor consigo mesmo em apneia. Não acredita que aquela personagem volte a aparecer.
No entanto, por motivos que excedem a razão e excitam a controvérsia, um dia a personagem secundária desse livro resolve arrombar uma das portas do capítulo onde está oportunamente encerrada na mesma fala há séculos.
A sua terna descrição é sumária e a sua intervenção, relapsa na dureza do romance, não tem pretensões vitalícias, nem instintos programáticos excelentes. Mesmo assim, é provável que Carlos Klenner encontre uma mulher. A mulher que ama loucamente Felipe Espiritu Santo de Saavedra. Mas é possível também que durante o tempo em que Margarita Von Haff sacia o quotidiano, vai à rua, por exemplo, tomar café, pagar as contas, comprar leite, carne e alface, à farmácia, ao notário, ao parque municipal, ao ginásio, às aulas de equitação do comportamento, é possível que Carlos Klenner lhe apareça à frente, mais do que uma vez até, e consiga desviar o eixo gravitacional do romance e com ela prepare uma morte formidável para Felipe Espíritu Santo de Saavedra e abalroe novos capítulos e novos encadeamentos e já nada do que então era seja o mesmo, nem mesmo Klenner, Margarita, ou o novo romance que o autor adormecido mantém temporiamente com Nastenka.

sábado, 2 de julho de 2011

Uma questão de etiqueta



As rotas da cerimónia demoram a decorar. Sinuosos trejeitos, tiques vários, a apicultura pobre da decência que espalha por todo o lado o seu fedor a urina queimada, poses impotentes e pormenores orbiculares. Era difícil manter-se em pé, quanto mais fixar a existência na fotogenia do impasse. Mas tinha de ser assim. As ordens tinham sido muito claras.
Quando Flectil, o mordomo, desapareceu por detrás daquilo que parecia ser a entrada de uma cave, uma luz muito intensa e árida incendiou o convidado. Através de um sistema de som cuidadosamente instalado na sapiência sórdida da casa, pôde escutar a voz da condessa cumprimentando-o e depois algumas breves instruções sobre como deveria dirigir-se até à sala de jantar. O caminho teria de forçosamente perscrutar o critério escrupuloso dos seus passos e estes o da cadência constante, caso contrário, um passo ou uma nota em falso e os meros 30 metros que separavam a entrada da sala de jantar decuplicar-se-iam, sem mais.
A extravagância aumenta a potência dos espelhos e fere a matemática formal. À medida que o convidado avançava pelo longo corredor que separava o ponto de partida do local onde o esperava a condessa e o acaso, a sua indispensável correcção muitas vezes escorregou no desejo de a possuir contra todas as paredes daquela casa, o seu rosto mergulhou nas piores inadequações dos sentidos, a sua firmeza triste e encenada foi punida pela inconveniência da antecipação.
Mais de 10 horas depois e a pouco menos de 7 metros da porta da sala de jantar, o convidado mostrou-se incapaz de prosseguir e perguntou se seria possível parar e masturbar-se. A voz considerou, com a desfaçatez das vozes gravadas. Depois, desatou a rir e voltou a falar das regras estritas do jogo, dos 30 metros famosos por se decuplicarem, da necrodinâmica da precisão.
O convidado achou tudo muito estranho e imediatamente a seguir resolveu correr e começou a despir-se e a correr para a porta aberta da sala.
Ao quinto segundo tropeçou numa qualquer desvantagem funcional, fez uma pirueta inútil no ar e ao pouco que pôde ver ainda não conseguiu dar palavras.