segunda-feira, 18 de abril de 2011

Madrid, enquanto Rafael Seno dormia

Apesar de já não contar com o amor e o beneplácito da época, Rafael Seno dormia. Tudo nele funcionava com a terna preocupação de pequenos dispositivos capazes de o predispor a fazer qualquer coisa que o arrancasse de vez da sua terrível batalha diária de “provador de experiências negativas”, afinal, trabalhava como porteiro e ascensorista num edifício velho, triste e ostensivo da Gran Vía, do topo do qual assistia à consumição de Madrid, o centro modernista de Madrid, como um mapa pusilânime e fraudulento, cheio de fissuras e pequenos derrames nos bairros mais congestionados pela boémia, palco de inábeis tribos suicidas. E porque accionava predisposições e dispositivos, depois de ter accionado um interruptor que lhe acendeu o sono e a liberdade faminta do seu último suspiro, Rafael Seno adormeceu. Ele era agora a vítima perfeita de um ilustre e maldito despojamento infinitamente multiplicado pelas ruas emaranhadas do seu equívoco, muito perto da praça onde tudo desaprende a ser. E nessa praça, tão parecida à de Cibeles, ele era a opção pelo seu desaparecimento nítido, e a prova viva, mas ausente, do seu reaparecimento numa outra cidade qualquer, numa cidade ocupada pelos seus mais belos desejos nazis.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O momento de Doisneau



1. Muito antes de Freud, já Stanislavski tinha chegado à conclusão de que um sentimento é como um dirigível, por mais imenso que seja é sempre mais leve do que o ar, e no seu cockpit há pelo menos um narrador e um co-narrador, os dois muito atentos ao seu papel de condutores únicos e exímios do destino comum de uma narrativa, que é sempre uma viagem mais ou menos longa e significativa de balão ou dirigível, atravessando o capítulo da nudez de tudo à velocidade imprevista de sempre.

2. A corporização radical da personagem proposta por Stanislavski é, no mínimo, apetecível: Stanislavski pretende imitar a fundo o real, usando e abusando dos vínculos ditos “naturais” da realidade e, detendo-se nas suas luminosas estratégias de imitação eficazes e antigas, construir uma espécie de fenómeno de actuação sobre a actuação propriamente dita, recebendo do texto crepusculares mundos fingidos, sentidos como Pessoa queria que sentíssemos o fingimento, projectando-o muito para além das suas próprias fronteiras e expectativas.

3. No fundo, Stanislavski queria imprimir no actor aquilo que no poeta navega apenas na distância mater da sua escrita. Ou, talvez, por outro lado, dotar o poeta de toda aquela perícia que envolve o actor, da maquinaria ignóbil do corpo humano quando realçado entre os seus, entre os que assistem vestidos ao bailado analfabeto dos seus gestos e passos torpes na periferia do indizível, inventário tradicional de posturas patéticas e autênticas. Mas mais do que isso, Stanislavski tinha vontade de autenticidade histérica, noções muito presentes no amor, quando o impacto entre dois corpos e os papeis que lhes foram atribuídos produz esse tão estranho “método de acções físicas”, tendo apenas em vista a satisfação de uma promessa proveniente do interior incómodo do indivíduo, que sempre nos é indevida, excepto nos lugares extremos.

4. Ora, todo o lugar é um lugar extremo, se nada mais além desse lugar existir. Toda a expectativa consumada é uma ópera que conspira. Como no momento de Doisneau.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Diotima Drake





As inevitáveis pernas de Diotima Drake tocam-se em média mais de 13.776 vezes por dia. Diotima usa e abusa das suas pernas nas deslocações que faz e que não faz, mas imagina, meras necessidades que apelam a forças puramente motrizes e aos cabelos secretos das adstringências, mas também quando se senta na cadeira de um café e se levanta depois de ter conversado alguns minutos com a chávena e deixado uma marca de batom na porcelana breve do seu destino. De repente, um cigarro nos seus dedos finos e trémulos e o cruzar e descruzar das pernas transparentes de mérito e de técnica, que ainda mais fazem subir a contagem das vezes em que as pernas de Diotima tocam uma na outra, delirantes, durante um dia inteiro e ainda mais afogam os olhos de quem a olha – e olham-na tão frequentemente – com os olhos oblíquos da anarquia.
De igual forma, quando sente nojo das abas sujas das sanitas públicas e gosta de sentir o cântico alto e solene do mijo com a verticalidade assumida que só um homem, de facto, pode conhecer, Diotima levanta a saia, cria o melhor ângulo para a melhor pontaria possível e faz força nas pernas, muita força nas pernas, até produzir uma sequência reconfortante de pingas de mijo que ela traduz em música minimal, êxtases sincréticos, um teclado de pérolas a despedaçar-se contra a indiferença radical das águas da sanita, bem na boca escura do rosto impávido do funcionalismo: uma capela de silêncio octogonal sem janelas ou superfícies imprevistas, entrecortado entretanto por algumas buzinas abafadas por camadas e camadas de distância e resistências, que, em uníssono, recuperam o murmúrio do café cruel, o suspiro contínuo da ventilação da vida, naquele dia, na casa das máquinas do medo.
Hoje, porém, as exigências da locomoção convidaram as pernas de Diotima a tocarem-se ainda mais vezes e mais perigosamente do que é sabido. Como se quisessem descobrir o fogo e através das vozes infernais da fricção desenhar calor e o calor rapidamente esculpir a sua própria ética abrasiva, as pernas de Diotima suavam gentilmente contra a pontualidade feroz das suas carnes batidas. Hoje, ao sentar-se finalmente na mesa do café, notou que lhe escorriam pelas pernas duas gotas de suor, que transportavam no interior a anarquia suficiente de todos os dias, horas e horas de olhares afogados, os mesmos, os outros, os de toda a gente, cheios de desejo, dioptrias e toxinas. O empregado que normalmente a servia estranhou que, poucos segundos depois de Diotima ter pedido o café servido na mesma chávena de porcelana loquaz e fria, se tivesse levantado e corrido para a casa de banho e batido com a porta com uma violência suspeita e deixasse solto no ar um enxame de pequenos gemidos.

domingo, 10 de abril de 2011

O protectorado do sono




Se entrarmos, agora, devagar, no quarto de Darkheim, Julius Dúbios Moebius Darkheim, a escuridão e o silêncio que nos acompanharam já desde o umbral e ao longo do íngreme corredor deixam a sua máscara cair aqui em desvantagem, da mesma forma que uns fios de luz da manhã, violando a persiana, se apressam a recobrar contornos e a dialogar com as formas ofegantes de um corpo verdadeiramente incluído na sua amável extinção.
Ao aproximarmo-nos da cama, vemos o corpo ignóbil e frágil de Darkheim atirado às suas circunstâncias, atravessado pelas flechas da manhã que lhe queimam as pálpebras lacradas com paixão. Vemos a desarrumação fértil dos que se entregam à hipermnésia confabulatória da morte como se fossem funcionários exemplares. Vemos um actor a dormir compulsivamente e à sua volta os lençóis vomitados, restos de alimentos imemoriais, pedaços de animais sagrados, páginas e páginas babadas de alvenaria transcendental.
Sabemos ainda que Darkheim, por exemplo, contratou quem lhe realizasse com propriedade e distinção este nada em que ele nada, imóvel e desterrado, e o mantivesse assim por vários anos, de forma a poder trabalhar mais tempo na sua obra de hipnoplastia reveladora, um palácio no sono e um monumento aos soldados mortos na guerra da solidão. Não sabemos mais nada.
“O protectorado do sono”, foi assim que Julius Dubios Moebius Darkheim quis que fosse denominado o seu território soberano dentro do Estado da Vigília Imperial. É, por isso, com um imenso pesar, que sentimos agora um breve estremecimento e o que poderia ser uma ninhada de distúrbios improváveis debaixo das suas pálpebras, que, trespassadas pelas tropas da Vigília Imperial, se descosessem e revelassem ao homem que dorme em Darkheim Darkheim precisamente acordado, e talvez por isso e pelo susto Darkheim realmente acordasse e provasse a fruta mais escassa da manhã, como o absurdo quando se veste cerimoniosamente para visitar a pobreza da sua condição.

E está tudo dito sobre Darkheim.

sábado, 9 de abril de 2011

Deficientes profundíssimos




Gosto de ver gente pálida sacudida,
agarrada ao polvo do acaso urgente
e à macrocefalia do interdito,
gente pendurada pelos lábios
ao código morse do desaparecimento,
os rostos como quedas de água incompetentes
ou atenuantes submersas da queda,
a entrarem, sorrateiramente, um no outro,
como se dentro de uma caixa negra
se pudesse misturar, agora, com a voz do acidente
a estranheza de lhe ter sobrevivido.
Gosto, ainda mais, do lago diagnosticado
nos confins das suas radiografias:
água da qual sairão amantes indefesos,
ou deficientes hipócritas e profundíssimos.

sábado, 2 de abril de 2011

Morris Mathaia Domínica



Morris Mathaia Domínica chega todas as noites a casa e brinca ao seu século XVII, com um gato que finge ser um príncipe.
As horas passadas naquele maravilhoso equívoco dão-lhe ares de marquesa de periferia, fazem-na passar por proprietária de um improvável futuro que simulasse o passado com perfeição e veneno, inscrevem-na num magnífico palácio coerente com as suas mais altas expectativas, e obrigam-na a um idioma oblíquo e antigo e a usar um longo e ansioso vestido, que, tal como um aforismo, é extensível a tudo, menos ao tempo incerto da sua terrível benevolência.
Pelo menos três vezes por semana Domínica agride o século XVII, pendura-o com uma mão e imobiliza-o perto da sua atitude raríssima, enquanto a outra mão se afunda na flor do seu mais profundo insucesso.
Domínica talvez fosse mais feliz se o exercício do seu erro se detivesse onde ou quando ela própria termina. Continuaria a ser uma valente deprimida, é certo, para quem a vida apenas é o que é, sabe ao que sabe, vale o que vale, mas talvez assim evitasse o requinte do choque que uma inteligência superior sepulta numa mesma natureza reactiva e não complicasse tanto a sua tristeza, nem tivesse tanto medo de a assumir.
Agora, depois de brincar ao seu século XVII, com um gato que finge ser um príncipe, Domínica dorme por fim.
Neste momento, Domínica sonha com a elegância negra do seu século XXV.