sábado, 26 de fevereiro de 2011

O curativo



Noto a enfermagem nova das tuas mãos
nas minhas.
Noto na voz religiosa das ligaduras
uma vocação egípcia.
Noto na noite escura da ferida
as inúmeras luas de Betadine.

Depois, podes até acariciar a seringa.
Mas, no fim, sou eu quem te inocula o tétano
do meu sorriso.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Fobias e Semântica



A lista de fobias que podemos, por exemplo, encontrar nas regiões mais sórdidas da internet ascende ao cúmulo do credível e ofende, não raras vezes, a nossa capacidade para as verbalizarmos de forma coerente e estável. Em primeiro lugar, estão os nomes, os nomes dados a cada fobia, cuja etimologia feroz vegeta na morfologia estrábica das palavras: das mais humildes, desde a Automatonofobia, que professa o medo das representações antropomórficas (bonecos, ventríloquos, figuras de cera, criaturas animadas), às mais exigentes e sonâmbulas, como a Tetrofobia, muito enganosamente o medo do número 4, ou a Triscaidecafobia, o medo do número 13. Já o medo mediático e incomum da famosa sexta-feira 13 recebe a pomposa e dupla denominação de Parascavedecatriafobia ou Frigatriscaidecafobia.
A lista é supostamente babélica ou infinita (e tendencialmente mais impenetrável quanto mais matemática e minuciosa for a sua incidência irracional), mas haveria, com certeza, nas intenções obscuras de Borges, ou mesmo de Stanislaw Lem, o projecto ignóbil e inconsequente de a levar a cabo em vida, como se se tratasse de um dicionário extremo e ofegante, ainda que a razão lhes ditasse o caminho contrário, qual fio de Ariadne, sempre pronto a sugerir as saídas emergentes e os antónimos da perdição.
Se a fobia vista ao microscópio deixa ampliar o seu campo vocabular e semântico de batalha, ao ponto de tornar a sua leitura tão estranha e heterodoxa quanto a sua etiologia desesperada, o mesmo acontecerá quando apontamos a lente do telescópio para o Espaço, onde o medo adquire os contornos subjugados do puro medo especular?
A resposta arde na frequência casta das galáxias.
A propósito do que ficou dito - e do que forçosamente acabou de ficar por dizer - há um poema de Roberto Juarroz que nos submete ao resumo, que é uma forma mais sensata de aniquilarmos distâncias, e talvez seja agora oportuno relembrá-lo em parte:

El fruto es el resumen del árbol,
el pájaro es el resumen del aire,
la sangre es el resumen del hombre,
el ser es el resumen de la nada.

(…)

La palabra es el resumen del silencio,
del silencio, que es resumen de todo.


E se houvesse um resumo para todas estas fobias, uma fobia que englobasse todas as outras, reais e imaginárias, uma fobia capaz de reinventar fobias, micro e macroscopicamente desumanas, que nome torpe lhe daríamos, como circunscreveríamos a sua ocorrência na ordem supersónica do caos?
Deixo aqui a minha sugestão:
Sjdfkjsafykawhfaleuylesfgawegfkawefaskeufgawegkfaskegfaskefaksefaksegfasekfgaels&gfaskefgaselufgseufgaseeufgaseufgase€gasefgaseufgasezfgaseukfgasekfasekfasekfasekf#sek#fgasefgasekhfgawpaweuw.eofuqwef723087r2pq3rufq2pefy2q380f!2^ç3pqyq38fq28pe4yf,weuofawfFOBIA.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Os espelhos insones



Os espelhos não dormem. Não sou eu que o digo, é Augusto Monterroso, um dos principais causadores da melhor literatura guatemalteca do século XX, num texto minúsculo – como, aliás, foi quase sempre seu apanágio.
Em “El espejo que no podía dormir”, o protagonista é um espelho de mão que associa a ociosidade e o repouso, de que tem sido vítima ultimamente (!), ao mais implacável sentimento de exclusão. Esse sentimento é agravado pela forma como os outros espelhos vêem nessa debilidade um motivo perfeito para troçar da sua inquietação infantil, minutos antes de mergulharem no seu próprio abandono, já fechados na cómoda do quarto, dentro do gavetão.
O texto termina em 6 linhas, a última palavra descreve o espelho infeliz como “neurótico” e Monterroso deixa o leitor a pensar.

Ainda que o autor sublinhe que à noite todos os espelhos eram guardados no gavetão da cómoda, para aí exercerem, completamente às escuras, a sua função ignorada – reflectirem a escuridão – eu não me conformo que a consciência os deixasse padecer assim de um sono tão descansado.
Estou certo de que a memória de um espelho não é abalada com facilidade. Durante o sonho, (porque os espelhos também sonham, libertam imagens), as coisas por ele reflectidas uma vida inteira reaparecem-lhe à tona da sua superfície gelada: restos de rostos e vidas mal maquilhadas, indecorosos fragmentos da nudez humana, pequenos crimes, saliências, pontos negros, manchas de batom, salpicos de saliva e neve falsa, a compelida contemplação de um deserto num móvel velho, o percurso do bolor numa porta fechada, a fissura crónica de um tecto, um enorme pedaço de cal que ameaça cair todos os dias, precisamente às seis da tarde…