sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ejaculatio Praecox (antecipando 2011)




Acaba-se de beber o ano que morre, em agonia decrescente, e começa-se imediatamente a beber aquele que nasce do seu extremo altruísmo mortal: a dádiva do seu nada ao próximo e ao porvir. Talvez haja, agora que 2010 se presta para o fim, como nos momentos em que a morte prefigura plena e minimizada na máxima conveniência dos casais combativos, um instante em que todo o templo da ortodoxia trema e se iluda no seu intervalo aberto e diferido, em que não haja a consciência aterradora do tempo, senão como eixo da contracção, arquipélago de instantes altamente instáveis e furtivos, para quem as máquinas persecutórias do tempo valem menos que uma mão sem indicador ou polegar.
Talvez se finjam núpcias e exemplos, uma esmagadora infecção na maioria do tempo, que, de repente, se torna alheio ao costume e à utilidade. Talvez tudo respeite o aspecto do ciclo e a determinação das épocas tributáveis e malsãs, a longa lenga-lenga das ruas expostas da cidade ao desmazelo e ao ludíbrio, com a sua invariância de vernáculo e a sua longevidade de animal de pulsação lenta e hábitos inusuais.
Somos feitos de grandes deglutições de tempo, parâmetros insubornáveis, coisas coerentes com a sua excelente extinção e falta de coragem para mais, e da decomposição lenta de tantos mundos cronometráveis e dedicados, oportunidades demitidas, fórmulas e vícios e âmbar, vimos agradecer a não sei quê ou a não sei quem os dados, responder à última carta da possibilidade à vida, sonâmbula, que agora, mais do que nunca, se julga merecedora de um novo coração.
2011 não será um dador de excepção. Pelo contrário, cumprirá com o protocolo temporal até ao seu último dia e doará também a sua mobília calculável a 2012, que é um ano, que apesar de tudo é anagramático, e eu sempre soube que os anagramas foram inventados por bebés para exorcizarem a passagem.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Uma mão perdura




Uma mão perdura na porta, entreabertas as águas e violado o script. Era suposto eu descer com cuidado as escadas, depois de me ter despedido de ti, apagar a luz ao fundo, bater devagar a porta à saída, e ir percorrer o caminho de volta de vez, esperando que houvesse pelo menos mais um dia parecido em tudo com aquele, mas melhor ainda, mais longo, oblíquo, coagulado e eléctrico.
Mas uma mão, esta noite, perdura demasiado na porta do teu quarto quando já te julgavas sozinha, apoiada num estranho projecto neurótico de um amante suicida, na louca acepção da maior das suas palavras e frinchas, alguém espreita agarrado à porta com a mão que perdura e entope as moléculas da madeira com mudas mas máximas intenções e extracto de ilegalidade e conquista.
Uma mão perdura. À excepção do cenário, que te recoloca num quadro da burguesia mais fantasista, onde o rococó é aparado pela elegância subterrânea dos requintes, preponderâncias agudas que irrompem entre sintomas de doenças ornamentais de cunho infiel, pequenas infecções arquitectónicas que se repetem e prolongam como símbolos da pequena monarquia do vício, verdadeiramente anti-constitucional e solene, o meu olhar concentra-se na fome do teu hábito e nas águas do teu hino, nas ondas do teu vestido principalmente, prevendo a sua inesperada utilidade severa, a ressurreição das distâncias impingidas até aqui.
Eis senão quando uma mão morre na porta, ou então atravessa-a sem dar por isso.
A porta desfere contra a parede o resto da sua idolatria.
Eu avanço para ti.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Morte em Veneza



Que rara realeza nos possuía, no exacto momento em que atravessávamos a Piazza San Marco, indecifravelmente e a pé, na inexplicável folia de quem detém e ostenta o edema da essência na precocidade dos caminhos, numa cidade coberta de arte extraterrestre, ao fim e ao cabo fotografias de espelhos e labirintos (não necessariamente por esta ordem e ritmo, causa ou consequência), recessos onde uma fonte nos falava alto e abertamente do tempo inadquirido, como só uma ferida aberta na consciência pudesse esse perfume obter?
Entrávamos assim na História Imaterial de Veneza (HIV positivo), na proporção de fantasmas de gesso e atavios, para provar dessa inaquisição total, dessa pobreza veloz e autêntica que é ser patético, com o ar de quem está a ser, de facto, muito feliz.
“Olha, mamã, são seres do planeta Prestígio!”, pudemos ouvir entre as arcadas uma criança dizer. Mais tarde, abordou-nos um casal apaixonado que queria que lhe lêssemos o destino. Mais tarde ainda, a chuva perspicaz no modo como negociava com as transparências na face do teu sigilo, uma vez arrombado o arcanjo e violado a impostura da cosmética correlativa, exposto o teu púbis aos Verões insociáveis do meu féretro.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Alexandre Bloom



Alexandre Bloom é um grande coleccionador de despedidas. Começou por sentir um prazer rasante, porém incerto, perto da palavra adeus no dia 23 de Outubro de 1955, enquanto se despedia do senhor da loja de ferragens epónima – Augusto Kunh –, onde costumava entrar regularmente, apenas para pousar os cotovelos no balcão de madeira e sentir, com os dedos polegar e indicador unidos, aquilo que ele acreditava ser o idioma débil do serrim.
Nesse dia, contudo, ao despedir-se tranquilamente do senhor Augusto Kunh como de costume, Alexandre Bloom sentiu o tal formigueiro nas imediações da palavra adeus mal a proferiu, como se de dentro da palavra adeus chegassem agora aos seus ouvidos os ruídos abafados de uma festa semi-clandestina, como se as portas blindadas da palavra adeus não fossem suficientes para insonorizar o barulho ensurdecedor dessa festa, para a qual – propôs Bloom – todos os convidados deveriam atender ao dress code e levar vestido alguma peça de roupa trágica e imaterial.
Apesar de todos os esforços para entrar na festa que se prolongou durante toda a noite de 23 para 24 de Outubro de 1955 na palavra adeus, Alexandre Bloom nunca conseguiu distinguir muito bem de onde é que vinha o tal barulho e acabou por não encontrar a entrada de emergência da festa, embora tivesse ao longe ouvido os distúrbios causados pela música alta dentro do seu desejo de a possuir.
No dia seguinte, Bloom voltou à loja de ferragens de Kunh só para poder despedir-se dele (“Olá, Senhor Kuhn; adeus, Senhor Kuhn”) e, com isso, accionar a festa (para a qual nunca resgatou nenhuma possibilidade de convite), e deixou definitivamente de lado a história do serrim.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Sabina Fields



Não é fácil falar de Sabina Fields. Ela apareceu numa manhã de Inverno de 1997. E a partir desse dia não mais descansou. Sabina é, de facto, um fantasma muito influente, talvez mesmo um dos meus melhores fantasmas, se exceptuarmos todos aqueles que se instituíram.
Lembro-me perfeitamente da noite desta fotografia: era uma noite varrida pelas intermitências da chuva fina que caia diante de uma luz mesquinha e incongruente, uma noite onde o nevoeiro tinha descido mais cedo sobre a cidade parcialmente abduzida, como se o tempo tivesse sido contratado por amantes ou assassinos, que ofuscassem a ordem com as costas das mãos da sua lei. A lua tinha o perfume das antevésperas e a tua pele cantava o seu retrato contíguo. Sabina sabia que vestia um vestido preto, muito curto, e que o vestido se afeiçoava aos seus contornos como ninguém, e que os seus contornos mordiam os meus olhos como serpentes sem paz nem domicílio, e que o seu corpo branco e indigno era como a mais bela nação inimiga de sempre, e que a sua ágil rendição de leite vulcânico, luvas negras e boquilha longínqua, não tinha tradução na minha língua tradicional, veiculados já os sinais exteriores de infecção e riqueza, como que para perturbar todos os emblemas terrestres, dir-se-ia mesmo para desmembrar todas as antigas rotinas e feitorias, na sua mais tenra espessura trágica e experiente.
A fotografia marca um momento em que, logo depois de descalça e levemente meditativa, Sabina acende um cigarro na ponta longínqua da sua boquilha e olha com a obliquidade máxima dos seus olhos para mim, que a pretendo convencer para a eternidade do meu erro. Tínhamos feito amor pela primeira vez, depois de termos seguido todas as pistas que nos obrigaram até ali: e ali era o seu quarto confortável e descortês, as suas próprias pistas, restos de preservativos que falharam por segundos ou milímetros ou mistério, elementos básicos de cenografia, curiosidades, pequenos detritos, e a pose mimética do gato Azahar, que parecia actuar mais como uma peça do mobiliário ambíguo do que como uma fonte fechada de perspicácia moderna.
Tinha 22 anos. E o vírus de Sabina Fields.

sábado, 11 de dezembro de 2010

The blind leading the naked




Um cego é guiado pelo cão do acaso até uma praia do avesso e proibida. O cego não sabe que é cego, por isso julga que vê, mas também desconhece a existência de praias do avesso e proibidas, por isso não sabe que se encontra agora, precisamente, numa delas, com um cão que o guia, como única constatação que vive fora de si e reivindica ser o vértice do poema.
Este cego tem a sensação (no mínimo) problemática que percorreu, sobre a areia húmida, influente e tórrida de Vénus, pelo menos 200m livres, descalço, ausente, inadquirido, mas ao mesmo tempo, ignora como chegou aqui, a si, assim.
A sua época é a do desmaio e da bissectriz. A sua dança, a das intermitências das despedidas.
Como um imigrante, com características inatas e omissas, falta sempre a este cego os papéis e os ingressos para o seu dia seguinte. E ainda bem que é assim, porque no dia seguinte - estão-me agora a informar pelo auricular, da produção - o cão do acaso é abatido e o cego não aguenta a perda e morre também, agarrado ao seu dono, e a praia sai do avesso e torna-se pálida e permitida
e a história tem um fim.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As flores do mal




O nosso annus mirabilis tinha exactamente trinta minutos de vida. Com a mão magoada pelos cristais que a delicadeza e o frio fortaleciam, pediste-me que te ensinasse o desassombro do poema de Larkin ao espelho,
enquanto o teu corpo acrescentava cães com raiva ao meu reflexo coagido, dedos de luvas cirúrgicas por todo o sítio
onde não houvesse paz
e as crianças brincassem de vez aos parricídios,
ao invés de irem dormir
com um ursinho de sangue entre as pernas.

“They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.”

Não é porque a intenção não se detecta,
que a acção mexe menos ou enlouquece ou desiste,
caída numa herança sem fundo,
doadas já as suas extremidades e as suas réplicas,
os seus pólenes, potências, e as suas expectativas,
à descontinuidade da espécie
àquilo que por aí vem
de nunca vir.

Quisemos fazer uma cópia fiel da miséria,
para a qual servíssemos de modelo inquisitivo.
Mas nem isso nos impediu
de termos filhos indetectáveis de nascença
como flores obliteradas pelo descrédito,
postas à prova em livros e cemitérios
de oportunidades vazias.