sábado, 27 de novembro de 2010

Theatrum Anatomicum




Feliz nunca é bem o termo.
Nada nunca é bem o termo, é certo,
mas feliz, menos ainda.

E é por isso que eu tenho a certeza
que o mais pequeno país do mundo
é não ser feliz
- e querer ser feliz, ainda,

é a grande moda deste Inverno,
assim como as flores que nascem
um pouco loucas na boca do pugilista,
fruto das suas gengivas sensíveis
e da face menos visível do escudo
onde está gravado o brasão
da sua falta de reservas

porque mesmo que as nossas raízes
pesem o dobro dos advérbios

é preciso pintar o mundo com clorofórmio verde
e assistir, sem hesitação, da tribuna
à autópsia de um desequilíbrio.

domingo, 21 de novembro de 2010

Arquipélago dos Falsários




A tentação banha os falsários. São três da manhã, uma hora suficientemente desonesta, mas às portas de tudo aquilo que nos é propício. Há sempre tempo, muito mais tempo às três da manhã (do que às duas, à uma, à meia-noite, etc.) num lugar onde a insignificância é posta à prova pela profissão intransigente e ofegante da vertigem: um quarto, por exemplo, barca inesgotável e multímoda, pira de detractores e omissos, sempre a primeira edição de um exemplar da História Universal da cobiça, com todas as suas páginas amareladas pelo vício, janelas e símbolos abertos para a cidade mortal.

Três horas antes precisamente, num bar, a vertigem apresentou-se ao piano como vendedora de destinos postiços, com serpentes como efeitos indomáveis nos cabelos molhados da chuva que já caía há dias e a indisciplina como um sal imaturo e munido de expectativas e castiçais; a origem aparecia-lhes em sonhos, a origem e a sua triste e louca dentição que iluminava a ofensa com o foco na oferta de uma noite diferente, divertida, numa grande cidade, onde a única coisa que fazemos bem (e às vezes nem isso) é cair e, por vezes, até por isso, equipar a ausência com um sistema de navegação oscular.

Suponhamos que se trata de um arquipélago (duas ilhas),
o arquipélago dos falsários, banhado pela tentação
(um excelente hermafrodita),
que capital servirá a república insular dos falsários?
onde ficará a assembeia provisória dos indecisos?
Perguntas pertinentes e a última, mesmo, voraz. Ligo o computador e visito a página da embaixada do Amor no Arquipélago dos Falsários, concorro a um anúncio para tradutor da embaixada e fico imediatamente nos quadros da empresa. Sorte ou Benefício?
Acham que eu falo e escrevo e domino muito bem,
quer o idioma de Amor, quer o de Falsários.
Pediram-me apenas que fizesse uma radiografia ao meu destino
e análises ao sangue da intuição.

Eu respondi-lhes que um beijo é sempre bilingue.
Não há anjos 100 % íngremes,
pássaros com uma só asa,
valores ciclópicos
como um poema
ou uma erecção.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Viagens na minha técnica




Conheço a história de alguns portugueses que foram a Espanha comprar orgulho e nunca mais de lá voltaram. Levaram consigo apenas um guião, cheio de falas e indicações para a sua nova personagem, uma muda de roupa, e os cristais sinuosos e imanentes do frio que foram acumulando, durante anos, aqui.
António José de Oliveira e Silva, por exemplo, doravante Carlos Fernández Muñoz y Marquez, recebeu instruções muito claras, mal se dispôs a partir, sobre o seu novo papel no país vizinho: usar o passado só em caso de extrema necessidade e sob as vestes intolerantes dos novos desígnios; obrigatoriedade de mudar de estilo, corte de cabelo, cor dos olhos, altura, peso, profissão e raízes; pedir transferência imediata da dor antiga para uma dor mais moderna e assertiva; mandar tosquiar os preconceitos e circuncizar as fobias; e, sobretudo, pôr a nostalgia a trabalhar em seu próprio benefício.

Jamais




Jamais, a temível capital da Terra do Nunca, não fica muito longe daqui. Aliás, nos dias sem nuvens é mesmo possível avistar Jamais, a torre mais alta da sua sé catedral, os edifícios engalanados de flautas e asas, pertencentes ao corpo governamental e diplomático do sonho, a antena vibrante das telecomunicações, a ala norte do palácio da imaturidade secular, e mais um ou dois triunfos da sua arquitectura lunática e acidentada, que se erguem contra a negatividade que a etimologia obscena depositou na sua invertebrada constituição.
Embora à primeira vista não pareça, Jamais vem descrito no mapa como a mais emancipada micro-nação de que há memória e registo. Isto porque Jamais está de tal forma encorajado a diluir-se na sua inexactidão, que nenhum mapa aponta as mesmas coordenadas para situar Jamais. Digamos que Jamais – mais do que a temível capital da Terra do Nunca – é um pequeno país incerto e itinerante, sendo este argumento ainda assim incapaz de explicar porque Jamais aparece ao mesmo tempo assinalado por todo o planeta mapeado, como se todo o planeta fosse absoluta e completamente Jamais, como queria Peter Pan.

sábado, 13 de novembro de 2010

Da decepção




Subo até ao observatório da decepção. Lá em cima faz um vento tremendo. É a culpa e os cabelos da culpa a baterem-me no rosto e a deixarem consequências, uma música infértil que se aloja na violência da cena e não me deixa prosseguir com a observação.

Se estivesse à espera de ver florestas a arder, encontraria primeiro na tua pele os patrocínios, perto dos lábios da biblioteca e da história da humidade característica de certos livros, quando são folheados com um dedo, saliva e desdém.

Mas não.
Antes que as florestas ardam, antes que te veja com os olhos mergulhados no éter e na porcelana fina, eu estou atento à decepção e só à decepção.

Passo horas, por isso, entre o charme do alcance das vistas daqui sobre toda a península da distância contrita, com todas as suas montanhas nevadas de sémen seco, com todas as suas areias movediças, mesmo correndo o risco de te perder para sempre

nalguma praia projectada a mil quilómetros deste sítio, nua, completamente nua, apenas coberta de razão
e querosene

búzios, pólvora e pormenores.