quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Auto-retrato com fantasmas e mamíferos



Eu e tu: o resto são fantasmas. Fábricas de lençóis aflitos. Empresas inadequadas ao mundo visível. A disfunção eréctil da promessa de aparição.
A sociedade aquosa e secreta dos fantasmas. Espécie de produto catabólico do omisso, que é o distintivo do amor e a pistola impalpável do mortal, que por mais amar o próximo se tornou efectivamente longínquo.

A casa deserta, continuamente adiada, sem episódios de maior relevo ou directrizes. Horas mais que malignas escoam do espaço interior a sua manutenção inevitável. A invertebrada mobília da noite. Os moluscos da insónia. A escuridão adesiva. O silêncio adesivo. A música da água morta nas canalizações. Passos imperceptíveis, dados em falso num plano sem gravidade nem resolução.
Tudo parece evitar-se a custos baixíssimos. Um aquário cheio de instantes destruídos, adaptados entretanto com as guelras da memória vã.

Eu e tu, dois mamíferos elegantemente despidos, maravilhados com as suas imperfeições ideais.
A luz da Lua que atravessa o postigo e descola imagens e desloca olhares. Técnicas nulas e mistas para acender a audácia, para ascender à audácia, como se estivéssemos mergulhados na pré-historia do ânimo e do aviso, no futuro trémulo da hesitação.
E no entanto, passeiam-se à nossa volta as formas plenas da desobediência em lingerie, influentes flores do interlúdio, os dejectos delicados da insensatez que já não nos assustam com a sua epilepsia mordaz.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Didáctica da mentira





Levitar é mentir. Tentar escapar às leis de Newton dá prisão perpétua, como a água que nasce, dita caminhos com desdém e lógicas imprevistas e, no fim, suicida-se nas altas temperaturas da parede que a detém para sempre no seu imenso oblívio,
como uma progressão aritmética sem razão, constante ou juízo.

Na próxima encarnação serás rastejante, que é o cúmulo do terrestre, que é para veres porque nunca deverias ter tentado mentir.
E rastejar é a forma mais acabada de prestar vassalagem à terra, com todo o nosso ser, dignidade incluída.
Por isso, a levitação está proibida. É-se obrigado a dizer a verdade sempre. A verdade do nosso peso terrestre ao ouvido das cicatrizes, que também se movem sobre o solo, ainda que sobre um solo fictício, onde a esterilidade fez governo e raízes, o desemprego grassou e o mundo fingiu um passado em comum com o resto do corpo que é ar, água e fogo fundidos.

Por isso, evito levitar em público. Continuo a achar que será
sempre melhor haver mais quem em nós nunca acredite.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sala de pequenas cirurgias




Há sempre uma infecção no insondado que atrai as multidões e faz um brinde com a nossa serenidade adolescente e míope. E é possível ver-se daqui o insondado - e a sua capital a arder – e mais não fazer do que a descrição atormentada do obstáculo da vida, entre mim e o insondado, entre dois tempos rivais mas reconhecíveis na pestilência do séquito, no inferno dos seus desejos sem sentido e sem vez, na trágica pulsação de ninguém. Nus e dirimidos.
Mais não fazer, ou fazer tudo talvez para que o insondado permaneça insondado, contraindo assim o vírus da timidez tipo 1,
a gripe dos diminuídos por sua própria conta e risco,
uma hérnia no dizer
e um cancro no único pulmão da iniciativa.

O último prognóstico era muito reservado também
e recusou-se a prestar quaisquer depoimentos
aos jornalistas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A síndrome de Setembro






Setembro não destoa dos uniformes brancos das empregadas que em breve eu vou matar. Mas elas têm o cuidado máximo de o repetir pelo corpo todo, Setembro pelo corpo todo, de alto a baixo, como enfermeiras amestradas e espíritos tácticos do lugar, para que eu nunca esqueça que o sol já brilhou mais forte noutras galáxias e que as memórias são fungos com tiques de cogumelos nucleares, e que os sonhos podem ser fósseis de derrotas, máscaras mortuárias de algum instante incapaz de voltar
a ter ênfase na constelação dos enganos.

Setembro é o filho primogénito da incompatibilidade com o fim do Verão. Um ligeiro atraso mental ilumina o final das tardes de Setembro. As folhas que caem, secas, cantam cantigas com menos um cromossoma na esperança. É como que Setembro tivesse nascido com a ousadia do híbrido ou do mutante nas mãos, mas ao mesmo tempo não soubesse como a usar e caísse instantaneamente em desuso pela hábil anemia do tempo, nas mãos da falta de coragem
e talvez até de coração.

As luzes do palácio estão agora desmaiadas.
Costumo deitar-me muito mais cedo em Setembro. Não faço por mal.
A cama favorece o império frágil de um naufrágio,
a noite sedada pode assemelhar-se repentinamente
ao útero de uma segunda e mais desavergonhada mãe,
com a sua neblina vesga e o seu romance adaptado ao grande ecrã.
Já na cama, peço às minhas empregadas que me contem uma história passada inteiramente no Verão. E elas contam.
À medida que a história avança, os uniformes brancos desaparecem,
como a breve semi-vida de um ansiolítico banal.
Todas elas têm tatuado a milésima segunda história
de Xerazade.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Notícias do Inferno





A questão é o trânsito sempre caótico nas vias principais do inferno. Só de helicóptero poderia cortar os membros supérfluos dos anjos e viajar até ti, que estás no céu de quarentena, tão descalça quanto aborrecida de tantos monossílabos ideais e sufocantes carícias.

Não fosse este pequeno pormenor e as distâncias inabaláveis que ainda pesam sobre as duas estâncias fixas - nós, dir-te-ia que há um lugar no purgatório, totalmente patrocinado pelo mal implícito, onde a clandestinidade está vestida de branco e os rumores de bom sexo e melhor asilo já chegaram, inclusive, às portas do paraíso, ainda que deturpados pela vulgar consciência de quem os repele por rivalidade, diferente cor política, ou apenas enquanto gesto reactivo,
como a virgindade velha da inveja camuflada de sermão.

E abolindo a pertinácia desses pormenores, a minha proposta é a de que nos encontremos precisamente neste sítio. Afinal, no inferno as distâncias não estão assim tão doentes que não possam – como no paraíso – não existir, e há bem pouco tempo foi inaugurada uma auto-estrada (que ainda carece de limites) entre o Inferno e o Céu, passando precisamente por essa área de infracção aberta
24h por dia,
para quem, como tu e como eu,
precisa muito de voltar a sofrer
lesões e orquídeas.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Fomos apanhados a desaparecer




Fomos apanhados a desaparecer
do mundo, uma noite em Madrid,
cobertos de decibéis e querosene,
depois de termos gasto metade do corpo
em tratados de tauromaquia,
massagens idiomáticas
e aulas práticas de suicídio
reversivo.
Era costume atirarmo-nos para a noite
e darmos saltos ornamentais
da plataforma da vida
para uma piscina de corpos
com menos de um metro de profundidade
e águas amarelas.
Era nítido o desejo pelo desaparecimento,
como uma aparição em ruínas.
Mas a pátria recomeçava invariavelmente no dia seguinte,
bombardeada e indiferente.

Hasta aquella fría noche de Madrid,
en una casa ubicada en la Avenida de los Aparentes,
cuando hemos por fín comprendido
la sagrada inutilidad de desaparecer.