quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Nosferatu do método



Tenho o pressentimento inacabado e esbaforido
da tecla tocada até ao fim.
É o som que arromba o trabalho da tecla,
a música que destrói a sua carpintaria
extremamente permissiva,
o grito que escurece as pancadas do sexo
e dissolve a cena violenta num sono vigiado
e privilegiado por lâmpadas e labirintos
incumpridos.

O alarme é um animal de hábitos negros:
soa apenas quando a cópula termina.
Nenhuma parte de mim precisa de mim.
Nenhum prazo, ou arranjo,
ou necessidade centrípeta
sente a falta radical da minha alegria
para que possa existir.
Aqui, a luz perde a utilidade também.

É como que se de repente tudo estivesse
estranhamente pousado
num acidente certíssimo
e à oportunidade fosse acrescido
o Nosferatu do método.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Expiação




dói-me o teu aparelho longínquo,
dói-me o irresistível artesanato
da distância,
dói-me o irrespirável teatro
ortopédico da salvação,
dói-me o choque frontal do amor
com a sua tremenda falta de humildade,
dói-me a anestesia do teu lugar vago,
dói-me a dança esquelética da minha dissimulação,
dói-me a propaganda póstuma das tuas mãos,

quando aplaudem a castração do herói em palco,
quando atrasam a pesquisa para a cura da neoplasia
da eternidade,
quando investem todas as suas economias e auroras
numa dimensão mais intolerante,
quando massajam a minha culpa ciclópica
e maltratam o meu endereço final.

dói-me, sobretudo, a grande subjectividade da dor,
a arquitectura desmaiada da esperança,
a longa travessia do rio líquor a nado,
a falsa assinatura dos seus contratos nervosos
com o imperdoável,
e o preço que eu pago
pela minha dor elegante
nas lojas mais prestigiadas da cidade
arrasada do amor.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O convite ao convite




I

Interessa-me fotografar a mobilidade do convidado,
fazer uma biopsia aos seus passos pela tradição
menos frequentada por mim

equipá-lo de uma cronologia compatível com o seu talento
para me diminuir

talvez um escafandro elegante e um desnecessário calendário omisso
o ajude a respeitar
um calafrio na cave que o come vivo
como um viveiro electrónico de instantes
com necessidade de recarregamento rápido
e actualizações várias
e sem acesso à sua palavra-passe
tamanha é a falta de rede nos subúrbios do êxtase,
nas vésperas do veredicto.

Quero um convidado à sombra da sua desproporção
constante e crucial.
Convicto do pouco tempo que lhe resta para aceitar
o convite, preparar-se rapidamente para a festa,
e sair de lá sem nenhuma garantia de lá ter estado
convicto.

II

Recordo que também eu sou um convidado
e tenho uma cronologia fomentada por interesse
alheio, elíptico e prolixo.

A desproporção amamenta o meu tempo derramado.
E sou obrigado a aceitar os acenos da inércia
quando não te tenho por perto
para voltar a afastar-te de mim.

Nasci de uma estrela teórica
na manhã programada
para nunca existir
a não ser
sempre
em Não Existir.

Uma insólita primavera nas unhas mascara,
de facto, uma doença rara nas raízes.

Somos, então, pelo menos, dois convidados.
Um deles com acesso à região do princípio.
Outro à do fim.

Sim, porque um dos convidados tem o dom
de poder também receber convites
e sms’s do infinito.

Um convidado não existe sozinho,
nem o amor pode ser democrático
por delicadeza,
por isso,
alguém precisa de alguém, e que esse alguém
lhe dirija por uma vez que seja um convite preciso
e que esse convite sobressaia
na monotonia monoteísta do presente
como um convite à ofensa
com um sistema de absolvição à distância
de um convite.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Risco de explosão




Não fui vacinado contra a arrogância
do dia seguinte.
Vivi sempre no palácio das minhas necessidades
e fiz votos de pobreza extrema
quando te recebia
depois de a neve ter tornado os campos
féis à tua passagem perigosa
minados de interjeições suicidas.
Da última vez que te vi, e ao ver-te afastada,
a caminho da morte da perspectiva,
despedi os meus criados mais antigos
despedi-me das vozes e das panteras
e despi-me das muletas, dos andrajos
e dos ardis.

No momento em que acendi um cigarro
já no meu quarto, no palácio das minhas necessidades
já cumpridas,
esqueci-me que os fantasmas eram
feitos de um gás altamente inflamável
como a ferida áfona
que de ti
eu sempre desejei
aprender de cor.

domingo, 11 de julho de 2010

A síndrome





A quem apresentar queixa
porque a vida nos agrediu?
Como deixar nas desleixadas mãos
das autoridades incompetentes
um depoimento possível,
e a conivência histórica de um sorriso,
e um pequeno charco trágico no chão
desenhado pelas glândulas da incerteza
interpretado pela parafernália do príncipe,
dirigido pela má índole
e pós-produzido pela má-fé?

Como hesitar demasiado
sem correr o risco de deixar
de existir?
A quem apresentar as condolências depois?
Quando a gôndola do tempo se afundar
num doméstico erro de perspectiva
e numa boca sensivelmente aleatória e ortopédica,
já nenhuma originalidade na confissão vencer
senão a dos frescos dos tectos da síndrome

com as suas luzes estrábicas de submundo
fieis ao paradoxo de Proserpina
subsumidas tauromaquias
na pele

sexta-feira, 9 de julho de 2010

La pistola virgen: o período refractário ao espelho





Logo estarei na indiscretíssima janela
de um quarto com vistas
para um lugar indecidível,
uma praça à qual lhe faltarão
memória e clientes,
uma oficina sedada
no meio de um deserto doente
diante do teu fastio.

Retrato tipo passe, senhor passageiro,
tenha uma boa viagem de regresso
da desgraça de não ter havido
um só momento de paz enquanto
não desaparecias em mim.

Do tipo: olha eu aqui,
patético e manuelino,
encaixilhado na minha falta de talento
para te perder e pagar promessas
numa casa
com paredes imperdoáveis de nascença
e chão arrependido

numa casa
de inconfessáveis janelas sem caixilho
e vidros sem vida por malícia
e um telhado tecnicamente infiel
e um ar pesado e incompetente
e incompreendido.

Um dia tu passarás, como todas,
debaixo da minha janela indiscretíssima
sem me ver, através de mim, através da técnica
dos fantasmas em serviço
e, misteriosamente, aceitarás viver sem signos
e sem recompensas
num quarto alugado como o meu,
num hotel de gelo incerto
na capital da insensatez.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Estátuas de calor




O calor cala a cena habitual,
inunda de nudez e estátuas
as nossas novas instalações.
Despromove o equilíbrio do corpo.
Instaura uma regra movida a indisciplina,
uma vida de estilo barroco minimal.
Enquanto a ideia da água
veste o vestido de noite
donde sobressaem as suas próteses
insolúveis na sedução.

Cada um com o seu infinito pessoal e muita pele ambígua
atravessa o calor.
Há um anjo na personalidade utópica da ventoinha.
As horas engordam. Algumas mais exageradas,
chegam mesmo a morrer, sem darmos por isso.
Os animais não dormem: derramam
lentamente o seu instinto
amador.

As faces abandonam o seu âmbito
mais ou menos prestável
e pedem pão extemporâneo
às portas das grandes desfigurações.

Eu escrevo numa banheira contígua
histórias de hipertermia maligna
provocada apenas por amor.

domingo, 4 de julho de 2010

Dia mundial da possessão




Passei a maior parte da tarde
aos comandos da minha nova nave natal
quase sem combustível, o corpo faz promessas
e manobras arriscadas
começa o reino dos tristes agitados
na península pobre dos esgares
a tradição anedótica da tua face
na tua face postergada
face à possessão.
Começa também todo um período inesquecível
de zimbórios e derrames
e a noite toda orienta a tese histérica
e ocidental de que a vida só existe
do pescoço para baixo, nada mais,
mas o dom de falar várias línguas refutadas
prova-nos o contrário
e faz a face mais falsa falar.
É precisamente do pescoço para cima
que as imagens evocam mais a sua irresolução
os sete círculos do inferno elevados ao quadrado
e um grito nasce sempre de olhos bem fechados
como na matemática a raiz quadrada de dois
é um número irracional
e nessa mesma redução ao absurdo
o meu habitáculo contrai-se
por isso visto o meu melhor fato
para a desintegração
e também por isso não ignoro
as praias da inércia
as máscaras do realce
e a massa atómica relativa
do cansaço, que virá, juro que virá,
assim como os privilégios de quem morre
na república microscópica do engano

por engano
e arte de bem enganar.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Uma casa para a apostasia




Não tenho uma só casa para a apostasia.
O meu afastamento não permite limites
perfeitos
nem pegadas que indiquem qualquer acontecimento
impreterível
e, no entanto, eu já passei por ali,
já fiz com que o espaço se dilatasse para que eu pudesse
passar por ali
com o meu tempo excessivo e retraído
mas nem uma morada ficou para contar,
nem uma pensão, nem um mote de hotel de estrada ou de esquina
nem a derme crucial de um banco de jardim
todo voltado para a descrição ofegante da paisagem.

Nem a morte me deixou lá dormir
quando soube da forma como eu
desacreditava

e como era necrodinâmica
a minha vida.