domingo, 30 de maio de 2010

Notícias do Inferno





No inferno, reencarnamos a cada minuto que passa
numa nova comédia viva. E isso cansa, inevitavelmente, cansa
o teatro anatómico do tempo, as estruturas tortuosas
do pensamento racional a que nos tinhamos habituado em vida
e os costureiros da má fé são dos únicos
que não pagam o tributo do zapping genesíaco
para trabalharem dia e noite nas oficinas da inconformidade geral.
Tudo isto pode ser ainda um pouco mais severo
se tivermos em conta que o diabo nunca existiu.

O inferno pode inclusive ferir
a insensibilidade dos espectadores
mais distraídos com questões pirotécnicas
ou com as sessões permanentes de sexo ao vivo
entre os seus conflitos mais nítidos
e toda a organização do festival.

Neste sentido, o inferno não só são os outros,
mas os outros que já não são eles próprios
e eu mesmo quando deixo de ser eu mesmo,
fora dos sessenta segundos que me justificam
e em que ainda é possível assegurar a analogia.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O pior está para vir




Ajuda a garantir a descontinuidade da espécie.
Usa a paixão em todos os pontos finais
e lava sempre a tuas vírgulas com água e filosofia.
Veste-te ocasionalmente de príncipe.
Pelo menos duas a três vezes por semana
diz a Camila que a amas com frequência
e sentido funesto.
Não uses o W.C. destinado ao pensamento
a não ser que tenha mesmo de ser
e não haja gente viva num raio de uma vida
e 300 milhas para oeste.
Se te apetecer algo para comer
esquece a vizinha da frente
até porque essa já tem um marido
a pilhas e sete gatos para dar de comer
e o vírus da moda e as mucosas tristes.
Volta-te antes para Pessoa ou Baudelaire
dá uma volta por Benedetti, visita Borges
na cegueira de uma biblioteca antiquíssima,
os clássicos fazem-te calar
e tornam a fome mais subjectiva,
comestível até,
como uma lepra lenta e autotélica.
E depois reaparece. Todos desejam alguém
que surja das cinzas.
Mas não prepares uma ressurreição qualquer,
dessas que se compram na iconografia do previsível,
aberta vinte e quatro horas por dia,
entre o espancamento e o cúmulo da reacção.
Faz a vontade do pai e ao país: foge deles.
Mata-os a cada microsegundo com mais decepção,
dedos, dardos e gasolina
mas nunca o bastante
para que eles não se possam mexer,
pelo menos um pouco, da influência para cima.
E deita-te com a literatura toda aos teus pés,
porque entre centro e ausência
o pior está para vir.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Perigo de esquecimento global




O mundo está suspenso
por uma mnemónica
exaurida.
Já nenhum mês tem 31 dias
contados pelos nós
das nossas mãos.
Milhões de pessoas
esquecem depressa que vivem
depressa e usam
a abertura absurda do mundo
como despensa e intestino,
abreviaturas quando
se lembram de ti,
uma coroa de flores de sono
que te oferecem enquanto
dormes coberto
de distância e formigas.
Os teus melhores amigos
fazem de ti uma ideia difusa
quando dormem pouco
e vão trabalhar de manhã cedo
com a mesma nódoa de whisky
na camisa que levaram na última vez
em que estiveram juntos
e brincaram às hemorragias.
O tempo é um grande diurético,
já diziam os antigos.
Mas a mulher que amaste há mais de dez anos
e há mais de dez anos amas, sem reservas,
embora se degrade e degrade ao som assumido
e sincrético da mais eficiente fisiologia
todos os dias da tua vida
e se pareça já mais com um escombro do sentido
do que com aquela que deixou a sua imagem pesada
e convexa no camarim da letargia

mesmo essa, precisamente essa,
não te poupa o carnaval das suas réplicas diferidas
cada vez que te aproximas de uma nova possibilidade
de amares outra vez outra viciosa despedida
e assim sucessivamente até ao fim
se é que o fim não estará ele também suspenso
por uma mnemónica com inúmeros problemas
de existir.

domingo, 23 de maio de 2010

Esquecimento global




O tempo é um grande diurético.


Um dia Eva sofre o seu primeiro susto
verdadeiro quando acorda condecorada
pela música da hematúria.

A declarada intrusão do tempo no chichi
fazendo-se passar com as credenciais
de um sangue apócrifo
procurado pela polícia
microscópica do sigilo
fê-la readormecer.

Não contou nada do que viu e sentiu a Adão,
que continuava ocupado a contrair a sua sífilis.
E começou a emagrecer.

Eva era uma cidade cheia de fome
fundada no baixo-ventre,
rotundas com circulação temporária
nos dois sentidos
e avenidas amplas e amabilíssimas
onde se podia encontrar artistas,
multidões e arquitectura incandescente.
Mas agora ela tinha o tempo todo contra si.
Por isso, quando chegou aos 40 quilos
e vendo-se enclausurada num corpo
que mantinha apostas cada vez mais
altas e arriscadas com o silêncio
teve a primeira conversa com o marido.

Adão chegava sempre demasiado cansado
e bêbado para a ouvir.
Foram inúmeras as vezes que tentou
ligar ao seu criador, mas o número estava
sempre deserto.

Além de emagrecer, Eva encolhia.
De uma forma, aliás, magistralmente
proporcional e moderna.
Migrava até à nulidade com uma nitidez quase abrasiva
talvez por nostalgia da nudez perdida
algures entre um e outro arquétipo
talvez porque a decepção lhe pagava
um melhor salário pelo seu trabalho imunodeprimido
que era viver.

O enfraquecimento e a nulidade crescentes
colocaram-na primeiro numa cadeira de rodas
depois numa cadeia de acontecimentos reduzidos
mas com grande impacto no futuro da Terra.

Quando não tinha mais do que o tamanho
e o protagonismo de uma bactéria, Eva
descobriu, por si própria, a cura contra o tempo
e pela primeira vez insurgiu-se.
Tinha agora uma verdadeira família
e, nas regiões anaeróbias do desejo,
o regime patriarcal do tempo
praticamente não existe.

Antes de voltar a ser mulher, Eva participou
em muitas festas, colónias e ritos
unicelulares e proibidos.
Depois despediu-se de todos e voltou a si.

Adão não quis acreditar novamente no que via.
Deus tinha o telemóvel desligado
ou com um número não atribuído.
E Eva, cansada de limpar o pó
das roldanas da história
e de beijar as mãos oportunistas
da injustiça
foi procurar a mentira.
Que é como quem diz: voltou a dormir.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Música para cépticos (um caso de negligência médica)







O médico tinha acabado de desistir
de mim.
Ouvi o rufar de um tambor próximo
da expectativa mais negra.
O sexo exausto de um saxofone
na periferia da vida
anunciando
do alto das suas últimas notas terrestres
o nível de saturação da vertigem.
E o público, finalmente,
a aplaudir.

A sua sombra era uma poça de suor,
o suor da sua desistência traduzida
em transpiração, memórias vagas
de um quarto em Antuérpia
agora compelido num estranho número de sapateado
de dedos inquietos
sobre a pele proibida
da escrivaninha.

O médico pousava o estetoscópio
como um domador de serpentes
pousa a flauta na melodia
e dizia qualquer coisa incompreensível
enquanto atirava a espátula ao lixo e o olhar à parede
que se perdia nas sombras soerguidas
da descrição do problema
e o verbo que viria a seguir
começava já a brincar
numa cama de sangue
ao início da sua boca
como uma espécie de alegoria
com baixo índice de glicose
na certeza.

Amar começa por uma ligeira inflamação
nos bons princípios
- disse ele -
e depois essa música que me fala,
essa música é pertinente,
infectou, fez-se ver,
arrastou literalmente o senhor Humberto
para uma patologia amoral que o corpo nega
numa escola de desejo e espelhismos.

O senhor está a amar, senhor Humberto,
- continuou o médico, deixando um pouco a sua desistência
de lado, tentando convencer-me de que a música
que eu ouvia era apenas uma consequência deserta
própria dos seres com uma forte susceptibilidade
à voz amada, morta e constituinte,
e às suas inúmeras plateias de sentido
nem sempre do agrado de um Orfeu
com pouco jeito e paciência para descer
às profundezas do objecto.

Amar não tem cura, senhor Humberto,
mas também não mata ninguém.
Pode ter uma vida quase normal.
Faça longos passeios e divirta-se.
Evite apenas a profilaxia.

E mandou-me sair.

Mas eu não estava a brincar.
Nem a amar verdadeiramente
a vida.
E no dia seguinte,
enquanto o médico lia a notícia
do meu falecimento
passaram helicópteros do exército
cisnes da polícia lírica
e sinestesias com pedaços de metáfora
entre os dentes
doentes civilizacionais
com falsos apaixonados pela trela

e a tarde rebentou e a noite eclodiu
e o silêncio voltou a dar o exemplo
numa cidade onde ninguém existia
na acústica do outro
a não ser como ruído
ou revés.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Primavera




A primavera é um efeito de pirotecnia.
Uma performance de pássaros
às portas da ressurgência.
O súbito entusiasmo das flores
do mal pela dor adormecida
dos dias mais longos e mais benevolentes.
Suor vendido como água termal
em garrafinhas de oxigénio
para usar à superfície
todos os dias
e uma rara toxina
completamente apaixonada
pelo sistema nervoso central
da sua melhor tarefa:

paralisar-te, no exacto momento
em que a minha boca já não me obedece
quando as pistolas de pólen fazem pontaria
ao solstício do texto

e disparam sobre as duas personagens
uma branca eterna
e crescem os primeiros cabelos
de novos papeis

domingo, 9 de maio de 2010

Sobre o Transplante da Humanidade




Aos poucos, as técnicas de transplante
irão ocupar uma área maior
do que sensatamente lhes corresponde.

Depressa, a identidade ganhará músculos
gigantes na estratégia
que a partir de agora servirá para a definir
para sempre pior.

Os tempos mudam as vontades
e as vontades mudam o dobro.
O mercado, sempre sedento
por novos rostos e corpos belos
e redutores, fará de tudo para comprar
a melhor equipa de cirurgiões, psiquiatras,
patentes, máquinas e computadores,
salas de espera com piscina e anestésicos
com sabor a autonomia relativa, circo negro
e peppermint.

Aos poucos, haverá clientes do mundo inteiro à espera
que lhe transplantem o corpo todo, milímetro a milímetro,
depois um pouco mais.

O mercado exagerará nos preços e no mistério
ao início, mas rapidamente dará sinais de pornografia,
com aliás sempre acontece,
quando um produto é procurado melhor
com uma pistola na mão do que com duas a voar.

Os olhos azuis, por exemplo,
sairão de moda com a brevidade
de um herbívoro adormecido,
a menos de três metros de um leão
extensível a todas as heterodoxias
com que a sua fome é educada
desde pequena.

As acções vão disparar
à medida que as necessidades
de transplante atinjam o despropósito
e as linhas travessas com que se cose a compulsão
suportem o último comboio com destino ao disparate
(que nunca será transplantado com êxito
por uma nova ponderação
porque as ponderações serão sempre rejeitadas
pelo senso comum
e pela falta de imunosupressores
e compressas ontológicas
nas farmácias.)

O mercado sairá de cena também a qualquer momento,
como um ditador que se escondesse num suicídio temporário
e, sob pseudónimo, publicasse ainda um livro
sobre o transplante da humanidade.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A partir da "Cordilheira" de Daniel Galera




Fiquei a dever um poema a Daniel Galera
que me deu a melhor morte em Ushuaia
mesmo tratando-se fleumaticamente do fim do mundo
e haver nele neve e a pronúncia acentuada da neve
a sobreexposição de um suicídio anunciado do ponto mais alto
do fim do mundo, que são os nossos enredos
quando nunca se desenredam
como a neve quando nunca derrete
como a noite quando nunca termina.

Fiquei a dever um copo a Holsen,
o amante excêntrico ao ponto de se deixar
possuir pela sua própria era vazia
porque achou em Anita um pretexto,
o mesmo pretexto que Anita achou nele,
os dois muito mal achados aliás,
muito convenientemente mal achados, diria mesmo,
um pelo outro, os dois por nenhum de si.

Fiquei de pagar um café a Danilo,
quando voltasse de viagem também.
Eu estava com ele em São Paulo
e até certo ponto a sofrer Buenos Aires
subentendido entre a sombra venenosa do whisky
e as falaciosas arquitecturas da espera.
Mas depois, talvez porque a língua espanhola
é da minha melhor família famélica
deixei de o acompanhar tantas vezes
e acabei por comprar um bilhete só de ida
para a Argentina que Anita pintava
entre o tango e a angústia de ser cúmplice
sem querer.


Afinal, da nitidez do seu instinto
malévolo e materno
instruiu a morte de nós os três
com flores com fama de percevejos
e um romance à prova da sua vida.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Fragmentos de um ensaio escrito de joelhos

Eu considero o amor dentro de uma genuflexão, “esa genuflexión máxima del arrebato”, como escreveu um dia Diego Medrano (Oviedo, 1978), num livro que tem muito de coisa genuflectida, a começar pelo título El hombre sobre las rocas e a acabar numa espécie de nota constritiva, pseudo-explicativa e testamentária, o último poema “Despedida y cierre”.

Todo o livro de Medrano é percorrido por um movimento violento de queda (e mais: pela suspeita de que o tempo é uma força essencialmente vertical, num só e decisivo sentido, ignorando alguma relatividade defunta por delicadeza e alguma gravidade crítica por vício), incorporando uma certa “atitude atlética de cair / sobre a causa das coisas contraproducentes / primeiro”, como escrevi num texto não muito longínquo, que caía ao meu lado também, curiosamente numa repartição do erotismo de cujo nome agora não quero lembrar-me.

Morto por vestir os andrajos de um maldito na era do capitalismo tardio e da realidade rarefeita, Medrano aparece na capa do seu livro de óculos escuros (icárico ma non troppo, diríamos), com ar de boémio condescendente, uma mistura de lobo iluminado pelo uivo transparente da epístola, com as multidões apagadas dos últimos dias aos seus pés, personagem de um telefilme policial dos anos 80, entre o tédio e a dinastia de princípios, a pose e a poesia autodestrutiva, a noite analfabeta e os recados do rancor.

Mas não é da marca Medrano que eu quero falar. Comecei por dizer que o amor que eu considero, considero-o dentro de uma genuflexão, de uma aterragem forçada de joelhos no áspero chão do virtuosismo, tal como acontecia na infância, quando tropeçávamos, ainda em terra firme, e como era bom tropeçar, cair de joelhos, sangrar e fazer um curativo minúsculo com direito a vínculo perpétuo com a vida. Hoje já não damos conta que caímos. Porque a excepção é não cair, habituamo-nos à queda. Também não sentimos o tempo e o tempo tem atrito amarelo e dá nas vistas. Enfim. Eu quero é voltar à genuflexão, depois de ter caído do início do texto até aqui, mas dou-me agora conta que já não é da mesma genuflexão que eu quero falar, nem mesmo daquela que queria falar quando comecei esta frase genuflexa. Going on.

Medrano, no poema 25, que fala de genuflexões, arrebatamento, lobos, céus e infernos (deus sabe o quanto Blake se fartaria de o reprovar se um dia o tivesse de aceitar na sua lista de amigos do facebook), Medrano fala também com o desconhecimento de causa daquele que, uma vez consciente de que cai, não consegue prever o fim, o limite da queda, a fronteira entre a queda e a sua consequência indízivel, e, por isso, antecipa-a no gozo insalubre das metáforas e no silêncio escorregadio dos mitos. Antes dessa “genuflexión máxima del arrebato”, Medrano escreve: “Desconozco si nuestras vidas están llamadas a convertirse en literatura por encima de la normalidad, del sentido común (…)”. De alguma forma, Medrano convence-se e pretende convencer-nos de que:

1. A literatura é uma excepção à banalidade da queda (a literatura está “por encima de la normalidad” e a normalidade é cair)
2. O sentido comum não é literatura, logo exerce o seu direito de queda.
3. A vida (sentimental) situa-se algures na suspeita (ele desconhece, não ignora) entre a normalidade da queda e a excepcionalidade da terra firme, que é uma espécie de enfermaria ilegítima do sentido comum, cheia de profissionais competentes que tratam das nódoas negras e das feridas que a queda contínua provoca nas nossas microscopias para sempre.