sexta-feira, 30 de abril de 2010

Do amor ufano e descortês




Não, nem mesmo inscrito em aulas de cavalaria
lendária, cursos de idealização à distância,
seminários sobre as últimas consequências
de estar vivo eu pude permanecer.

Os livros diziam que os teus olhos criavam um campo magnético
sinistro, e que depois matavam o macho que havia nos meus.

Todas as cartas de amor se revelaram de leitura difícil,
aplicada a prisão preventiva em todos os meus interesses.

Contei uma a uma as tardes de hipocrisia geral,
tardes de folclore, sorriso inacabado e detergente.
Meu deus: o que eu tentava permanecer
sem permanecer!

Agora chega.
As minhas mãos têm GPS integrado
mas tão longe das tuas estão
que não há satélite que as enuncie
na rua onde vives, na casa onde moras
no quarto onde dormes, talvez vestida de drama
de amor ufano e descortês.

Nem a espada, nem a bússola assintomática que comprei
nem o mapa do tesouro do teu corpo pixelizado no meu
no momento em que liguei a câmara e todas as luzes doeram
fizeram com que eu permanecesse
no ecrã e na tua relativa ucronia.

Quixote tinha razão: havia com certeza um vírus qualquer
na forma como os moinhos de vento agitavam as suas velas
sem se verem.
E claro: um rocinante de 1987, cheio de ferrugem,
dejectos de memória imprópria, cinzas e infiltrações
de todo o tipo, nunca fora muito favorável
às prosaicas esperanças das raparigas.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Poética*





Faz um mundo.
Desfaz um mundo.
Agora faz Undo.





* Esta fórmula também serve o interesse dos leitores.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

A tradição de estar triste




Da perspectiva da morte
a vida é como se nunca
tivesse havido.
É isto que nos ensinam na escola
dos cépticos:
a morte dispensa planos
e apresentações.

A morte tem os horários parecidos
com os nossos e os corolários
mergulhados na desfeita.
A morte é arte de crianças hipersones
uma greve de fantasmas vestidos a preceito
para nenhum dia seguinte nem depois.

A vida fabrica apenas paliativos genéricos
e soluções onde a nitidez é corrompida
pelo hálito quente da especulação.
Também simpósios onde a tarde acentua
a tradição de estar triste
sem pára-quedas nem efeitos laterais
manhãs previamente mordidas
mesmo quando as frutas são as mesmas

o sabor um dia pode revoltar-se
a morte deixar de ser fiel
tornar-se tudo de repente
num lugar barato e habitável.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dying Mannequin




Tens quilómetros de vida debaixo do vestido
restos de documentos históricos célebres
praças chumbadas a geometria descritiva
e ainda assim nódoas negras belíssimas
lesões que dão flor na primeira primavera
de cada mês
rotundas iluminadas por minúsculas intempéries
a circulação condicionada nas artérias
de maior afluência e imperícia.

Tens, em certa medida, um apartamento
com vistas para a intermitência de riscos
e promessas de enciclopédia na pele
onde a vastidão e as areias convencem
e os olhos repetem estranhas litografias:
uma caixinha consagrada à convergência
de um homem melhor no seu mistério
a noite, como uma jóia irrequieta qualquer
dentro da caixinha
e principalmente um pedaço de juventude
acrítica e leve
posta à prova num livro entreaberto
censurado pelo vento e lido pela líbido
e os direitos autorais do teu suor
agora sou eu que os protejo e incito.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Musas de calendario




El poeta sigue creyendo
en calendarios con musas
y en todos los malos modos
de usarlas:
primero con sospecha y renuncia,
luego con ríos de curiosidad
gritos de guitarra y champán.

En los inmensos desdenes de su harén
el poeta mantiene una casa poco recomendable.
Más de cerca, en la apatía del patio:
un grupo de Marías Antonietas
menos famosas pero más probables
se desnudan del tiempo negro de la venganza
al que se entregaron como poemas
que se hacían pasar por milagros.

Hoy y siempre es martes de carnaval.
A los niños les sale muy fácil expresarse
jugando con el oculto bajo las dádivas
de la petulancia.

También les pasa lo mismo
a los poetas que siguen creyendo
en musas de calendario
figuras de santas en su despacho
que nunca cicatrizan en las paredes
totalmente fieles de la inevitabilidad.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Breve História do Fim





Passei a tarde a conversar com o meu epílogo.
Ou melhor: com um assessor do meu epílogo.
Trazia uma mala e da mala tirou más notícias
que espalhou em cima da mesa, depois de ter
pedido um café e uma água com gás natural.
Depois dos prolegómenos para uma visita
tão inesperada quanto necessária e invasiva
o assessor do meu epílogo leu uma enorme carta
onde se discutiam os meus remotos direitos à vida
entre uma e outra piada de mau gosto
e algumas considerações um pouco antiquadas
sobre a velocidade do fado na sociedade actual.

Comunicar-me o abreviamento da minha vida em dez anos –
apenas por ter fumado e bebido muito na noite anterior –
tinha sido o único motivo pelo qual teria feito aquela viagem.
Você está quase sem pátria, homem – disse-me ele
enquanto afagava um gato imaginário no seu colo protocolar.

Perdido por dez, perdido por mil.
O sol metálico da tarde encurralava-nos
aos dois numa sombra exígua e o meu homólogo
descontraiu um pouco e foi-se deixando ficar
como um empregado mal remunerado pela sua condição
e depois de ter a consciência limpa
e o estômago cheio de poemas, cervejas
e cigarros começou a falar das hierarquias temporais.
O calor era tão grande que atravessava o tempo
sem que o assessor do meu epílogo desse por isso.

Não sei quando regressou ao seu planeta fatal.
Mas o homem já tinha uma certa idade.
Estava prestes a pedir a reforma, segundo me contou,
e naquela tarde, depois de tantas cervejas, poemas e cigarros
é natural que o meu epílogo lhe tenha dado umas férias pagas
na demissão.

domingo, 18 de abril de 2010

Metus Causa




Está exento de responsabilidad criminal
el que obre impulsado por miedo insuperable.

(Código Penal Español, Art 20.6, vigente desde 24 de mayo de 1996)

I

Enquanto escrevo não pára de soar um alarme. A sua primavera propedêutica e unânime enche-me de pânico e o pânico provoca-me alergia aos limites humanos. A noite, na acidez do barulho que cumpre agora o seu vigésimo mandato, divorcia-se lentamente do continente da escuridão. As luzes participam da festa que o alarme promoveu um pouco por toda a ausência da minha coragem.
Escrevo em legítima defesa, para que o alarme se afogue depressa e a noite regresse à sua ocupação peninsular. A noite é uma península. Não obstante, enquanto se ouve um alarme soar a noite é uma ilha ilegítima dentro do sua republica das bananas, o tempo sofre febres altíssimas, e do delírio do tempo nascem palavras e talismãs.

II

Escrevo porque alguém me ataca primeiro
com a mão incognoscível que eu tanto suspeito
haver para além das duas que temos ao final do cansaço
para suportar a novidade do que nos queima sem parar.

III

O alarme actua nos tímpanos de forma pouco inovadora, previsível até, mas não é essa a sua capital. O alarme interroga-nos a pele com beliscões que o tacto jura não compreender, os olhos são destruídos pelo seu desejo inimputável de hipersónica vingança, os cabelos caem todos com a elegância árida de um mau acontecimento global, e um surto de inocência reactiva vem recolocar o nosso ser outra vez no seu lugar, agora marcado com uma cruz a vermelho na quadrícula da vida ingrata por vocação, depois da desfocagem que o alarme proporcionou no tempo para compensar uma noite sem vantagens e um texto genologicamente refractário.

IV

A modéstia impede-me de pensar na androginia do medo quando tudo está demasiadamente iluminado. Só as crianças, que vivem na idade média do medo, estão apagadas pela exaustão. O medo convoca uma inocência à força naquele que o modela com os seus sentidos a um tempo excedentes e degolados. Entretanto, rasgam-se lagos de luz no sexo da combustão. Queimaduras ou lesões de último grau respondem melhor ao disparate, onde o grito como um ícone negro governa do alto do seu idioma alarmado e uma angústia surda e cega enriquece subitamente, graças à generosidade do princípio de realidade, às custas do coro das catecolaminas em perfusão.

V

O alarme parou de soar.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Lamentação




A loucura envilece
as cerejas
abre a porta do desvelo
com a chave dicotómica
do cansaço
entope as artérias
que irrigam os alvéolos
da contemplação.

A tarde procura nos vértices
dos últimos lugares
um critério suficientemente desonesto
para desaparecer sem deixar rasto.

Um animal promíscuo
é condecorado
fora dos catálogos
do realce.
A sua memória é agora
uma escola abandonada
de diástoles.

Restam as idades decepadas
da decepção. Um ou outro
motivo para desaprender
a perdurar.

A morte não se cansa
de me dar razão
e alguns vocábulos

água maioritariamente desigual.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

A desilusão foi a minha Beatriz





Restos de expectativa acesa na estatística
moderna tornaram-me num desiludido.
Afinal a minha face ficou perfeitamente disforme
depois do acidente que tive com a poesia.
Na rua toda a gente me conhece
pela minha identidade secreta
mas todos se dirigem a mim com arrepios.
As pessoas fogem da sua desilusão a sete pés
e não têm mãos a medir os quilómetros percorridos
descalços sobre a sua sombra a ferver
na velocidade tácita do seu curto papel cumprido.

Mas quando se trata da desilusão alheia
e da sua feroz capacidade para projectar
uma desnecessária posteridade
de imagens desiludidas
quando o outro se torna numa máquina
de desilusão apenas por aparentar estar
ou ser desiludido
então ainda mais fogem ou fingem fugir
patrocinadas talvez por um qualquer compromisso
urgente, cólica ou mera deselegância formal
já muito próxima contudo das bases do canibalismo.

Quando me encontram, as pessoas são normalmente
muito simpáticas e fingem aceitar
a minha habitação desiludida
em troca de uma noite
a ouvi-las falar dos efeitos
secundários da dissimulação.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Depoimento



I

Há uma caixa negra dentro
da finalidade do mundo
como uma manhã fictícia
que só um grande acontecimento
consente.

Há uma face humilhada
pela presença súbita da chuva
no argumento do meu medo
a única fala que tenho de saber
de cor até ao dia da estreia
do teu convite.

Há um presságio agitado e concreto
entre o teu desaparecimento e o meu
vício de o exibir.

Há uma comunidade inconfessável
que habita a órbita do esquecimento
do mundo nessa parte do mundo
inconfessável por natureza
que é o esquecimento de si.

II

Pouca gente se apercebe
de que há um plano ultra-secreto
para destruir a sociedade
com assédio e um certo tipo
de flores desfavoráveis
aos cardíacos:
as carícias.

Os amantes vivem melhor mergulhados
no verbo matar de forma ridícula
e são vizinhos de um destino caído
em desuso pela probidade da terra.

Não tenho pena nenhuma destes tristes
que se enforcam com o seu próprio êxito.

Não temo sofrer da mesma notícia
nem sequer vir a ter o mesmo domicílio
de certezas doentes.

Sei perfeitamente
que o mundo não é aquilo que aparenta
ao espelho do seu tempo
nem nas suas mais antigas superstições
há relatos de um abraço tão severo
como foi aquele que nunca demos
por falta de braços na exactidão.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Aquilo que vestem os que estão nus




Posso ser negligente com a minha nudez
atribuir-lhe a noite de todas as culpas:
ela continuará nua dramaticamente nua e imune
insensível aos impostos dos meus passos
minúsculos para a deter.

A minha nudez é um pleonasmo infiel a si mesmo
e navega à velocidade de um corpo por segundo
isto se o espelho tiver uma óptima resolução
e a cópia libertar o original das inconveniências
de ter nascido primeiro e mais pobrezinho.

Um murmúrio inalterável de areia quase convicta
eis a minha nudez.
Praia impressionável à palpação.
Lei ao abrigo do desabrigo.

Mas ninguém imagina o quanto eu desrespeito
a minha mortalidade quando estou nu
sem os utensílios e os sentidos encobertos
pela famosa roupa de marca do tempo.

Chego até a acreditar no uivo e no perjúrio.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Normas de funcionamento de um hospital




1. Num hospital para amantes, os doentes nunca estão acamados - nem há camas sequer que lhes sirva - porque é precisamente do hábito da cama que eles se querem ver livres. E inocentes. Para sempre.

2. A austera e preferível posição vertical favorece a morte da morte que se diz reduzida, mas que os domina, assim como inicia o fim dos festejos das larvas da libido e sugere o voto em branco hormonal.

3. Não há qualquer espécie de internamento, senão das fantasias, umas convocadas ao coma, outras sujeitas à combustão.

4. Está inteiramente proibido o uso e o consumo de corpos correlativos e mesmo a amizade e a afeição são vigiadas continuamente da eficácia.

5. O hospital possui pelo menos um médico por cada amante.
E todos os benefícios da floresta pragmática de um paraíso norte-europeu:

6. Animadores pobres de serão. Génios a quem o amor causou claudicância e varizes. Gente que auxilia na cura contra aquilo que sente, mas que recebe uma enorme quantia por isso. Personagens primordiais. E enfermeiros especializados na ferida áfona que Derrida - um dos doentes externados aqui – julgava saber de ti de cor, logo quando a noite se suicida.

7. A abstinência sexual é ensinada aos gritos, através de altifalantes minuciosamente instalados nos corredores da má-fé.

8. As propriedades esfuziantes da nudez são extraídas por intermédio de drogas que prejudicam seriamente a representação do outro em toda a sua coerência erótica e simetria.

9. Todos os utentes têm de ter sempre o corpo coberto de analgesia e desaparição.

domingo, 4 de abril de 2010

Quarenta graus à sombra (com Platão e ideias irrealistas)




Quarenta graus à sombra
e a necessária precipitação dos olhares
que se cruzam depois da meia-noite
nos corredores mal iluminados de uma escola
de nudez absoluta relativamente àquele
que se despe sem querer perante a coisa
que quer ver despida.

O asfalto onde decorre este momento
derrete com o calor e liberta estratégias
de fumo e fuga que se frustram na inércia
que aguardam a água cega do momento
seguinte numa aerodinâmica sala de espera
onde aparecem os dois pela primeira vez
vestidos de convidados para o seu próprio labirinto.

E quando a audácia começar a dar dinheiro
contrata um arquitecto que projecte uma ponte
entre tudo em aberto e nada em rigor.
Pode ser que o amor dure para sempre
por alguns segundos
suspeitos de conterem lá dentro
várias vidas depois.

Lê sempre o prazo da eternidade que te oferecem
mais do que uma vez, e em todas as línguas.
E nunca te preocupes com a forma nem com o trajecto:
atravessa. Apenas e apesar de tudo atravessa.
Afinal a mesma coisa ocorre ao prisioneiro
no dia em que lhe anunciam o dia
envelhecido da sua liberdade perpétua
as grades que o espreitam no mundo das ideias
mais irrealistas.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Trânsito cortado na rua da inspiração




Soube hoje que a inspiração é uma mulher, de 33 anos,
sem os documentos em dia, uma cidadã estrangeira
e intempestiva num país pouco adoptivo como o meu
de origem, um enclave entre a poesia e a cegueira
uma princesa das que vivem apenas das revistas
uma actriz secundária numa colónia de cépticos.

Soube hoje que a inspiração é uma fada
com HIV positivo e com o fato de trabalho
coberto de manchas de corrector
e úlceras de pressão.

Antes que o locutor passasse à próxima notícia,
soube isto ainda:
que a cidade deprime estas dependências
fictícias, rebaixa-as até ficarem afónicas
e pedestres.

E depois, fá-las acreditar em desacreditar.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A história da Branca de Névoa (Snow Not So White)




A noite não tarda a rever-se no livro
das suas eternas reclamações.
Uma mulher muito famosa confunde-se
misteriosamente contigo nos corredores
do interdito.
As previsões falharam quando disseram
que hoje nevaria pedaços da tua pele.
Apenas uma névoa investiu na cidade
com a cultura do teu último suspiro.

Agora, toda a tua perseverança
pode ser vista por todos nós
até porque decidiste morrer
com os seios ainda habitados
nas mãos invisíveis do príncipe.

Por vezes a vida é madrasta
e a morte dorme com os pulsos
cortados pela ironia:

na mesma sala onde a tua exposição
ao tempo decorria sem grandes surpresas
enquanto eu desejava morrer também,
totalmente nu e sonolento dentro da urna
contigo, um homem muito baixinho, ao meu lado,
imaginava que sabor teria aquela maçã
envenenada que flutuava fora da tradição
paradisíaca.