quarta-feira, 31 de março de 2010

A bela adoecida




Uma mulher ama
as obrigações sujas
da sua igreja e adoece
por tempo indeterminado
numa instituição incompreensível
mas a sua doença, pelo contrário,
melhora a olhos vistos
na perspectiva do príncipe que a vê
da tremenda intolerância da Terra.

Uma mulher adoece onde o branco actua
de tal forma aflito e por toda a parte exigente
uma mulher adoece com um véu mal regulado
pelo veredicto da água surda que corre
da sua castidade extraterrestre
quase como cabelos
aperfeiçoados por enigmas
e pequenas famílias de serpentes
muito pouco verdadeiras

Uma mulher adoece até atingir
um estado suficientemente
adoecido. Depois uma mulher pára
de adoecer de repente:
quer subir na carreira de doente
e maltrata o meu perfil
com motivos pouco nítidos.

De príncipe e de louco
todos nós temos um pouco.
Mas eu não tinha tanto veneno
no beijo para te despertar
do teu desperdício
como te despertei
no dia em que eu próprio adoeci.

terça-feira, 30 de março de 2010

Últimas vontades




Deixo-te uma indicação inquieta
e uma explicação concisa
sobre a forma como deves
vender a tua ausência
a mais ninguém.

Deixo-te um velho planeta bipolar
e maioritariamente triste nos trópicos
da decência
uma nação na bancarrota da sua pose
irresponsável perante o auxílio.

Deixo-te uma bússola e um pêndulo
completamente perdidos nos seus afazeres
domésticos e desprezíveis.
O pack inclui ainda uma venda de oxigénio
e um revólver compreensivo
que fará as vezes da minha vez.

Deixo-te o misterioso compasso que desenha
ângulos mortos nos desertos onde acaba o coração
e começa o âmbito da flecha que não atingiu
por pouco uma história mais simples.

Escrúpulos que não cabem na caixa
negra deste poema.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Dúvida: uma parábola






Como distinguir na bata manchada
de um talhante
o hipotexto de um serial killer?
Como distinguir o que num corpo
vindo do amor
provém mesmo do amor
ou da universidade infecciosa
dos seus serviços?

Na dúvida, pede-se sempre primeiro
um quilo de carne de porco
ao serial killer.
(o medo come a inocência por trás
e eu assisto)

Na dúvida, pede-se sempre
uma dose de amor eterno
à mulher que nos emprestou
o corpo por meia hora
para que organizássemos a vida
em torno de uma indistinção
permanente.

Na dúvida, um homem acredita
com os taciturnos utensílios
que lhe concede o tempo
que lhe resta.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Informações Úteis



Amar mata.
Amar puede matar.
Vietato amare.
Aimer peut entraîner
une mort lente et douloureuse.
Loving can cause male impotence.

A falling love (epílogo e teorema)





I

O amor não é como Roma:
demora a cair.
Por isso, a volúpia é lenta
e o poema não nos ensina
o pára-quedas a tempo
nem que a queda
também ela é um objecto
passível de cair.

Demoradamente.

II

Porque repara: pode-se fazer tudo com o amor a cair.
Pode-se, inclusive, fazer amor com o amor a cair.

A neve, por exemplo, imita o amor a cair
como ninguém. Mas carece do pânico
que por vezes o amor a cair sugere
na sua nudez improvisada pelos gritos

do amor, diz-se por aí muita porcaria
quanto mais a cair.


III

E digo mais:
O amor a cair é um assunto
para ser discutido seriamente
no parlamento da tua indiferença.

IV

Foi ainda a tua falta de visão
teleológica da história
deste amor a cair
que fez com o amor parasse
de cair de vez
e caisse em si,
finalmente.

Ora, o amor pode cair
em todos os lados
menos em si.

quinta-feira, 25 de março de 2010

O amor admite coincidências




Um dia
alguém descobre finalmente
que é apenas um sujeito poético
da vida.
E que ama a mesma mulher
que o autor destes versos.

terça-feira, 23 de março de 2010

Domingo, velhos, crianças



Era domingo, e os velhos tinham mais cabelos brancos
na rendição. Mais consoantes mudas. Mais habilitações
para deixarem de falar mais cedo.

A injustiça invade de neve as cabeças dos mais incautos
e aos domingos a minha espécie é de uma sinceridade trágica
e insular e adoece em todo o seu enunciado

depois, um longo repertório de passos dados em falso
põe cabelos brancos nos homens e humidade
nas paredes irónicas que educam o cenário

atrás esconde-se uma fábrica de misericórdia
pouco merecedora de aplausos ambientais
e à sua volta brincam crianças lendárias
com elementos provenientes do carnaval
oportunista da sua vida real
e é nas suas perucas loiras de esperança
que agora pousa o meu olhar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Crónica de um W.C. ocupado, por motivos de força maior




Como um copo de vinho pousado na oscilação
o planeta acusa algum cansaço e o meu corpo dança
a ardente contemporaneidade da sua dor.
Tornado morto pela opacidade do instante
eu sou aquele que te espera despejada
de adornos e circunstâncias
do lado de lá da porta da casa de banho
de um comboio com destino ao desencontro.

Ainda demora muito
o amor?

É inútil entregar-me à especulação,
enquanto sofro:
do outro lado, fazes apenas o que todas fazem,
mas muito melhor.
Organizas a minha aflição ao pormenor,
de forma a que não fique nem um minuto de fora
da antiguidade das tuas práticas castigadoras.

Tens o cuidado de morder o lábio inferior quando
por fim o alívio inunda o poema concreto do teu esforço
estrelas que caíram mortas no fundo de um poço
cheio de noite, papel queimado e águas ferozes.

E quando de facto eu não puder mais aguentar
e pensar finalmente em arrombar a porta
o comboio parará na ultima estação do abandono.

sábado, 20 de março de 2010

Micronações: O reino do amor




É o amor, e não o Vaticano,
a mais pequena nação do mundo.
Podemos imaginar: um coração,
um enclave totalmente independente
do território estrangeiro que o domina.

Mas quando um coração se liga a outro
perde imediatamente a sua soberania.
As suas fronteiras adoecem e desistem.
O sol desfaz as faces dos seus príncipes.
O povo ganha finalmente um governo.

sexta-feira, 19 de março de 2010

As predilecções da pantera



Conheço todas as predilecções da pantera,
mas ainda assim temo pela sua erótica desvelada.
Uma vez, depois de mais um dia vencido,
na consequência de uma janela que se abriu
de repente no teu quarto
e, em parte, da noite de algum fantasma
que se libertou sem querer da fama
dos vidros partidos no chão
enquanto eu fechava o meu negócio sujo
com o vento que te retraía abertamente
o vestido e o vestido as nádegas
(sob a negligência negra dos movimentos
aquáticos, um corpo nada no nada)
foste colocada depressa no plano
de uma dança doente de pormenor


Uma vez nua no ar, pensei,
tens mais hipóteses de sobreviver
à teoria do acidente e ao longo intervalo
que se consome entre o cigarro,o disparo
e a analogia viciosa que descobri depois
entre os sinais e os planetas venenosos
que acendiam ainda no teu rosto lâmpadas
e estimativas precárias
e todo um corpo branco e enjaulado
na sua música pior

horóscopos que te limitavam
dando-te anos de vida a mais
numa cadeira de rodas
e a visão perpétua de um indivíduo
muito parecido comigo
a empurrá-la.

quarta-feira, 17 de março de 2010

O amor vive na maturidade das facas




O amor vive na maturidade das facas
pousadas num sono pouco reparador
e tu és convidado a participar nas suas festas
onde o aço dissipa o seu veneno elegante
diante do doente distante de si e do sol.

Nada na sua estúpida preocupação
por chocar quem as vê ao longe
fazia prever como estão tão bem
decorados os seus tristíssimos interiores.

Enquanto não serve para mais nada
a faca dorme e sonha que foge da
mão do seu dono depois de ter
perdido completamente o sentido
inanimado do pudor.

No mundo dos metais cortantes
primeiro vem a sua higiene ancestral
e só depois a oportunidade
para trabalhar dentro da perspicácia
abandonada do outro.

terça-feira, 16 de março de 2010

Canção da Mulher Descalça


A imagem lendária de uma mulher descalça
não porque as mãos estejam sempre descalças
mas porque os pés são as mãos das nossas desinibições.
A cidade não está preparada para a leveza
que uma mulher desempenha descalça
e oferece a sua espada à doença simpática
do amor.

Só os pobres e os pássaros
e as ambulâncias a vêem passar
porque nunca cicatrizam onde
a necessidade vende melhor.
Na perspectiva da cidade dos homens
uma mulher descalça põe a morte em perigo
e a vida depois.


Os homens ignoram, pelo menos três vezes por dia,
esta erótica crepuscular.
E vão para o Café e discutem gases
política póstuma e cerveja com futebol.

domingo, 14 de março de 2010

A casa (parte I)



É muito provável que dezenas de pessoas
estejam agora escrevendo a palavra provável.
Nuno Ramos - Ó

Estás sozinha, numa casa com mil quartos e não sabes em qual deles deves começar a morrer melhor e entrar. É fácil. A opressão leva-te à porta principal, depois à pequena chave pendurada em cima, à direita, ao lado do reflexo neutro da tua claridade tombada, à margem do teu lago virtual, e, finalmente, a tua inteireza inclina-se toda para o quadro da electricidade. Começas a jogar.
Acendes todas as luzes da casa. A casa perde depressa alguma ascendência e velocidade, agora que os seus milhares de metros quadrados estão expostos à nudez e escapam à extinção. Todos os detalhes estão agora escandalizados. Mas os objectos iluminados não deixam de lutar, atiram-te imagens à cara e pedaços da sua imobilidade ao coração, cospem-te, sem cerimónia, a sua identidade rasgada e o seu capital social.
Regressas ao princípio do corredor sem fundo onde antes estavas e sentes que uma praga de olhares te vem parar ao olhar, insectos minúsculos que deterioram a espada da tua acção imediata e accionam memórias ilegais. Começas a correr, como uma louca, com as pernas e os braços dessincronizados, na direcção oposta àquela de ti que ficou para trás, atenta e desincorporada, e de repente resolves parar.
Escolhes um quarto, o trigésimo terceiro, por exemplo. Abres e abraças a porta do quarto. Um raio de luz destaca uma cama dissecada, um armário velho vomita cobertores, vinagre e desarrumação, um quadro mal pintado à mão mal pendurado na parede oposta à cama, uma jarra de flores envenenadas, um cheiro a sexo, a colmeia e a senilidade total. Diriges-te então ao armário. Perguntas ao espelho quem és e o espelho devolve-te uma indiferença de minissaia, lábios pintados e risco de se estilhaçar. Abres a outra porta do armário. As madeiras rangem e quase que cantam. Dentro: o cadáver de um fato de anjo e um acontecimento de origem etnográfica, agulhas, cabelos e outros instrumentos de desaire ritual.

Pões-te nua num instante. A saia é sabão a escorregar-te pelas pernas abaixo, depois do top tirado, só de soutien. Enquanto vestes o fato de anjo, sente-se o barulho das câmaras a focarem melhor o instante, ouve-se o sono teórico da noite lá fora e a tecnologia do momento dá ares de desgaste, porque não acede aos teus pensamentos intrusivos e principais.
Depois do vestido vertido, calças uns sapatos de tacão alto e vens à janela ver quem passa. Afinal, está na hora de esperares o teu príncipe, um lembrete no teu telemóvel disparara e faz-te acordar para essa espécie de desporto olímpico que dizes praticar regularmente, pelo menos 5 minutos por dia, há já alguns anos. A noite colabora e traz-te pretendentes de outras galáxias: o bafo oculto de animais nocturnos e consagrados, a compensação da temperatura alta, própria de uma noite de Verão, o rumor dos fígados da multidão na aldeia mais próxima, situada nas erogenias da montanha, que veio com intenções de voltar.