sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Ejaculatio Praecox (antecipando 2011)




Acaba-se de beber o ano que morre, em agonia decrescente, e começa-se imediatamente a beber aquele que nasce do seu extremo altruísmo mortal: a dádiva do seu nada ao próximo e ao porvir. Talvez haja, agora que 2010 se presta para o fim, como nos momentos em que a morte prefigura plena e minimizada na máxima conveniência dos casais combativos, um instante em que todo o templo da ortodoxia trema e se iluda no seu intervalo aberto e diferido, em que não haja a consciência aterradora do tempo, senão como eixo da contracção, arquipélago de instantes altamente instáveis e furtivos, para quem as máquinas persecutórias do tempo valem menos que uma mão sem indicador ou polegar.
Talvez se finjam núpcias e exemplos, uma esmagadora infecção na maioria do tempo, que, de repente, se torna alheio ao costume e à utilidade. Talvez tudo respeite o aspecto do ciclo e a determinação das épocas tributáveis e malsãs, a longa lenga-lenga das ruas expostas da cidade ao desmazelo e ao ludíbrio, com a sua invariância de vernáculo e a sua longevidade de animal de pulsação lenta e hábitos inusuais.
Somos feitos de grandes deglutições de tempo, parâmetros insubornáveis, coisas coerentes com a sua excelente extinção e falta de coragem para mais, e da decomposição lenta de tantos mundos cronometráveis e dedicados, oportunidades demitidas, fórmulas e vícios e âmbar, vimos agradecer a não sei quê ou a não sei quem os dados, responder à última carta da possibilidade à vida, sonâmbula, que agora, mais do que nunca, se julga merecedora de um novo coração.
2011 não será um dador de excepção. Pelo contrário, cumprirá com o protocolo temporal até ao seu último dia e doará também a sua mobília calculável a 2012, que é um ano, que apesar de tudo é anagramático, e eu sempre soube que os anagramas foram inventados por bebés para exorcizarem a passagem.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Uma mão perdura




Uma mão perdura na porta, entreabertas as águas e violado o script. Era suposto eu descer com cuidado as escadas, depois de me ter despedido de ti, apagar a luz ao fundo, bater devagar a porta à saída, e ir percorrer o caminho de volta de vez, esperando que houvesse pelo menos mais um dia parecido em tudo com aquele, mas melhor ainda, mais longo, oblíquo, coagulado e eléctrico.
Mas uma mão, esta noite, perdura demasiado na porta do teu quarto quando já te julgavas sozinha, apoiada num estranho projecto neurótico de um amante suicida, na louca acepção da maior das suas palavras e frinchas, alguém espreita agarrado à porta com a mão que perdura e entope as moléculas da madeira com mudas mas máximas intenções e extracto de ilegalidade e conquista.
Uma mão perdura. À excepção do cenário, que te recoloca num quadro da burguesia mais fantasista, onde o rococó é aparado pela elegância subterrânea dos requintes, preponderâncias agudas que irrompem entre sintomas de doenças ornamentais de cunho infiel, pequenas infecções arquitectónicas que se repetem e prolongam como símbolos da pequena monarquia do vício, verdadeiramente anti-constitucional e solene, o meu olhar concentra-se na fome do teu hábito e nas águas do teu hino, nas ondas do teu vestido principalmente, prevendo a sua inesperada utilidade severa, a ressurreição das distâncias impingidas até aqui.
Eis senão quando uma mão morre na porta, ou então atravessa-a sem dar por isso.
A porta desfere contra a parede o resto da sua idolatria.
Eu avanço para ti.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Morte em Veneza



Que rara realeza nos possuía, no exacto momento em que atravessávamos a Piazza San Marco, indecifravelmente e a pé, na inexplicável folia de quem detém e ostenta o edema da essência na precocidade dos caminhos, numa cidade coberta de arte extraterrestre, ao fim e ao cabo fotografias de espelhos e labirintos (não necessariamente por esta ordem e ritmo, causa ou consequência), recessos onde uma fonte nos falava alto e abertamente do tempo inadquirido, como só uma ferida aberta na consciência pudesse esse perfume obter?
Entrávamos assim na História Imaterial de Veneza (HIV positivo), na proporção de fantasmas de gesso e atavios, para provar dessa inaquisição total, dessa pobreza veloz e autêntica que é ser patético, com o ar de quem está a ser, de facto, muito feliz.
“Olha, mamã, são seres do planeta Prestígio!”, pudemos ouvir entre as arcadas uma criança dizer. Mais tarde, abordou-nos um casal apaixonado que queria que lhe lêssemos o destino. Mais tarde ainda, a chuva perspicaz no modo como negociava com as transparências na face do teu sigilo, uma vez arrombado o arcanjo e violado a impostura da cosmética correlativa, exposto o teu púbis aos Verões insociáveis do meu féretro.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Alexandre Bloom



Alexandre Bloom é um grande coleccionador de despedidas. Começou por sentir um prazer rasante, porém incerto, perto da palavra adeus no dia 23 de Outubro de 1955, enquanto se despedia do senhor da loja de ferragens epónima – Augusto Kunh –, onde costumava entrar regularmente, apenas para pousar os cotovelos no balcão de madeira e sentir, com os dedos polegar e indicador unidos, aquilo que ele acreditava ser o idioma débil do serrim.
Nesse dia, contudo, ao despedir-se tranquilamente do senhor Augusto Kunh como de costume, Alexandre Bloom sentiu o tal formigueiro nas imediações da palavra adeus mal a proferiu, como se de dentro da palavra adeus chegassem agora aos seus ouvidos os ruídos abafados de uma festa semi-clandestina, como se as portas blindadas da palavra adeus não fossem suficientes para insonorizar o barulho ensurdecedor dessa festa, para a qual – propôs Bloom – todos os convidados deveriam atender ao dress code e levar vestido alguma peça de roupa trágica e imaterial.
Apesar de todos os esforços para entrar na festa que se prolongou durante toda a noite de 23 para 24 de Outubro de 1955 na palavra adeus, Alexandre Bloom nunca conseguiu distinguir muito bem de onde é que vinha o tal barulho e acabou por não encontrar a entrada de emergência da festa, embora tivesse ao longe ouvido os distúrbios causados pela música alta dentro do seu desejo de a possuir.
No dia seguinte, Bloom voltou à loja de ferragens de Kunh só para poder despedir-se dele (“Olá, Senhor Kuhn; adeus, Senhor Kuhn”) e, com isso, accionar a festa (para a qual nunca resgatou nenhuma possibilidade de convite), e deixou definitivamente de lado a história do serrim.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Sabina Fields



Não é fácil falar de Sabina Fields. Ela apareceu numa manhã de Inverno de 1997. E a partir desse dia não mais descansou. Sabina é, de facto, um fantasma muito influente, talvez mesmo um dos meus melhores fantasmas, se exceptuarmos todos aqueles que se instituíram.
Lembro-me perfeitamente da noite desta fotografia: era uma noite varrida pelas intermitências da chuva fina que caia diante de uma luz mesquinha e incongruente, uma noite onde o nevoeiro tinha descido mais cedo sobre a cidade parcialmente abduzida, como se o tempo tivesse sido contratado por amantes ou assassinos, que ofuscassem a ordem com as costas das mãos da sua lei. A lua tinha o perfume das antevésperas e a tua pele cantava o seu retrato contíguo. Sabina sabia que vestia um vestido preto, muito curto, e que o vestido se afeiçoava aos seus contornos como ninguém, e que os seus contornos mordiam os meus olhos como serpentes sem paz nem domicílio, e que o seu corpo branco e indigno era como a mais bela nação inimiga de sempre, e que a sua ágil rendição de leite vulcânico, luvas negras e boquilha longínqua, não tinha tradução na minha língua tradicional, veiculados já os sinais exteriores de infecção e riqueza, como que para perturbar todos os emblemas terrestres, dir-se-ia mesmo para desmembrar todas as antigas rotinas e feitorias, na sua mais tenra espessura trágica e experiente.
A fotografia marca um momento em que, logo depois de descalça e levemente meditativa, Sabina acende um cigarro na ponta longínqua da sua boquilha e olha com a obliquidade máxima dos seus olhos para mim, que a pretendo convencer para a eternidade do meu erro. Tínhamos feito amor pela primeira vez, depois de termos seguido todas as pistas que nos obrigaram até ali: e ali era o seu quarto confortável e descortês, as suas próprias pistas, restos de preservativos que falharam por segundos ou milímetros ou mistério, elementos básicos de cenografia, curiosidades, pequenos detritos, e a pose mimética do gato Azahar, que parecia actuar mais como uma peça do mobiliário ambíguo do que como uma fonte fechada de perspicácia moderna.
Tinha 22 anos. E o vírus de Sabina Fields.

sábado, 11 de dezembro de 2010

The blind leading the naked




Um cego é guiado pelo cão do acaso até uma praia do avesso e proibida. O cego não sabe que é cego, por isso julga que vê, mas também desconhece a existência de praias do avesso e proibidas, por isso não sabe que se encontra agora, precisamente, numa delas, com um cão que o guia, como única constatação que vive fora de si e reivindica ser o vértice do poema.
Este cego tem a sensação (no mínimo) problemática que percorreu, sobre a areia húmida, influente e tórrida de Vénus, pelo menos 200m livres, descalço, ausente, inadquirido, mas ao mesmo tempo, ignora como chegou aqui, a si, assim.
A sua época é a do desmaio e da bissectriz. A sua dança, a das intermitências das despedidas.
Como um imigrante, com características inatas e omissas, falta sempre a este cego os papéis e os ingressos para o seu dia seguinte. E ainda bem que é assim, porque no dia seguinte - estão-me agora a informar pelo auricular, da produção - o cão do acaso é abatido e o cego não aguenta a perda e morre também, agarrado ao seu dono, e a praia sai do avesso e torna-se pálida e permitida
e a história tem um fim.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

As flores do mal




O nosso annus mirabilis tinha exactamente trinta minutos de vida. Com a mão magoada pelos cristais que a delicadeza e o frio fortaleciam, pediste-me que te ensinasse o desassombro do poema de Larkin ao espelho,
enquanto o teu corpo acrescentava cães com raiva ao meu reflexo coagido, dedos de luvas cirúrgicas por todo o sítio
onde não houvesse paz
e as crianças brincassem de vez aos parricídios,
ao invés de irem dormir
com um ursinho de sangue entre as pernas.

“They fuck you up, your mum and dad.
They may not mean to, but they do.”

Não é porque a intenção não se detecta,
que a acção mexe menos ou enlouquece ou desiste,
caída numa herança sem fundo,
doadas já as suas extremidades e as suas réplicas,
os seus pólenes, potências, e as suas expectativas,
à descontinuidade da espécie
àquilo que por aí vem
de nunca vir.

Quisemos fazer uma cópia fiel da miséria,
para a qual servíssemos de modelo inquisitivo.
Mas nem isso nos impediu
de termos filhos indetectáveis de nascença
como flores obliteradas pelo descrédito,
postas à prova em livros e cemitérios
de oportunidades vazias.

sábado, 27 de novembro de 2010

Theatrum Anatomicum




Feliz nunca é bem o termo.
Nada nunca é bem o termo, é certo,
mas feliz, menos ainda.

E é por isso que eu tenho a certeza
que o mais pequeno país do mundo
é não ser feliz
- e querer ser feliz, ainda,

é a grande moda deste Inverno,
assim como as flores que nascem
um pouco loucas na boca do pugilista,
fruto das suas gengivas sensíveis
e da face menos visível do escudo
onde está gravado o brasão
da sua falta de reservas

porque mesmo que as nossas raízes
pesem o dobro dos advérbios

é preciso pintar o mundo com clorofórmio verde
e assistir, sem hesitação, da tribuna
à autópsia de um desequilíbrio.

domingo, 21 de novembro de 2010

Arquipélago dos Falsários




A tentação banha os falsários. São três da manhã, uma hora suficientemente desonesta, mas às portas de tudo aquilo que nos é propício. Há sempre tempo, muito mais tempo às três da manhã (do que às duas, à uma, à meia-noite, etc.) num lugar onde a insignificância é posta à prova pela profissão intransigente e ofegante da vertigem: um quarto, por exemplo, barca inesgotável e multímoda, pira de detractores e omissos, sempre a primeira edição de um exemplar da História Universal da cobiça, com todas as suas páginas amareladas pelo vício, janelas e símbolos abertos para a cidade mortal.

Três horas antes precisamente, num bar, a vertigem apresentou-se ao piano como vendedora de destinos postiços, com serpentes como efeitos indomáveis nos cabelos molhados da chuva que já caía há dias e a indisciplina como um sal imaturo e munido de expectativas e castiçais; a origem aparecia-lhes em sonhos, a origem e a sua triste e louca dentição que iluminava a ofensa com o foco na oferta de uma noite diferente, divertida, numa grande cidade, onde a única coisa que fazemos bem (e às vezes nem isso) é cair e, por vezes, até por isso, equipar a ausência com um sistema de navegação oscular.

Suponhamos que se trata de um arquipélago (duas ilhas),
o arquipélago dos falsários, banhado pela tentação
(um excelente hermafrodita),
que capital servirá a república insular dos falsários?
onde ficará a assembeia provisória dos indecisos?
Perguntas pertinentes e a última, mesmo, voraz. Ligo o computador e visito a página da embaixada do Amor no Arquipélago dos Falsários, concorro a um anúncio para tradutor da embaixada e fico imediatamente nos quadros da empresa. Sorte ou Benefício?
Acham que eu falo e escrevo e domino muito bem,
quer o idioma de Amor, quer o de Falsários.
Pediram-me apenas que fizesse uma radiografia ao meu destino
e análises ao sangue da intuição.

Eu respondi-lhes que um beijo é sempre bilingue.
Não há anjos 100 % íngremes,
pássaros com uma só asa,
valores ciclópicos
como um poema
ou uma erecção.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Viagens na minha técnica




Conheço a história de alguns portugueses que foram a Espanha comprar orgulho e nunca mais de lá voltaram. Levaram consigo apenas um guião, cheio de falas e indicações para a sua nova personagem, uma muda de roupa, e os cristais sinuosos e imanentes do frio que foram acumulando, durante anos, aqui.
António José de Oliveira e Silva, por exemplo, doravante Carlos Fernández Muñoz y Marquez, recebeu instruções muito claras, mal se dispôs a partir, sobre o seu novo papel no país vizinho: usar o passado só em caso de extrema necessidade e sob as vestes intolerantes dos novos desígnios; obrigatoriedade de mudar de estilo, corte de cabelo, cor dos olhos, altura, peso, profissão e raízes; pedir transferência imediata da dor antiga para uma dor mais moderna e assertiva; mandar tosquiar os preconceitos e circuncizar as fobias; e, sobretudo, pôr a nostalgia a trabalhar em seu próprio benefício.

Jamais




Jamais, a temível capital da Terra do Nunca, não fica muito longe daqui. Aliás, nos dias sem nuvens é mesmo possível avistar Jamais, a torre mais alta da sua sé catedral, os edifícios engalanados de flautas e asas, pertencentes ao corpo governamental e diplomático do sonho, a antena vibrante das telecomunicações, a ala norte do palácio da imaturidade secular, e mais um ou dois triunfos da sua arquitectura lunática e acidentada, que se erguem contra a negatividade que a etimologia obscena depositou na sua invertebrada constituição.
Embora à primeira vista não pareça, Jamais vem descrito no mapa como a mais emancipada micro-nação de que há memória e registo. Isto porque Jamais está de tal forma encorajado a diluir-se na sua inexactidão, que nenhum mapa aponta as mesmas coordenadas para situar Jamais. Digamos que Jamais – mais do que a temível capital da Terra do Nunca – é um pequeno país incerto e itinerante, sendo este argumento ainda assim incapaz de explicar porque Jamais aparece ao mesmo tempo assinalado por todo o planeta mapeado, como se todo o planeta fosse absoluta e completamente Jamais, como queria Peter Pan.

sábado, 13 de novembro de 2010

Da decepção




Subo até ao observatório da decepção. Lá em cima faz um vento tremendo. É a culpa e os cabelos da culpa a baterem-me no rosto e a deixarem consequências, uma música infértil que se aloja na violência da cena e não me deixa prosseguir com a observação.

Se estivesse à espera de ver florestas a arder, encontraria primeiro na tua pele os patrocínios, perto dos lábios da biblioteca e da história da humidade característica de certos livros, quando são folheados com um dedo, saliva e desdém.

Mas não.
Antes que as florestas ardam, antes que te veja com os olhos mergulhados no éter e na porcelana fina, eu estou atento à decepção e só à decepção.

Passo horas, por isso, entre o charme do alcance das vistas daqui sobre toda a península da distância contrita, com todas as suas montanhas nevadas de sémen seco, com todas as suas areias movediças, mesmo correndo o risco de te perder para sempre

nalguma praia projectada a mil quilómetros deste sítio, nua, completamente nua, apenas coberta de razão
e querosene

búzios, pólvora e pormenores.

sábado, 30 de outubro de 2010

Máquinas malogradíssimas



Uma máquina de fazer sumo da Terra e não haver sumo na Terra, senão suor proveniente da máquina e do seu esforço incómodo, humilhante e repetido para o conseguir.
Uma máquina de barbear mentiras, mas sem lâminas capazes de cortar rente os pêlos encravados das mentiras. A face mentirosa cheia de pistas de sangue e pequenas insurreições, mas a barba intacta, como se as mentiras fossem parasitas de ferro e amassem os pêlos em toda a sua extensão e península.
Uma máquina de costurar segredos. Segredos desfeitos. Impossíveis de coser. Nem com a linha mais inventiva. A paciência mais pálida e solene. A precisão de deus quando opera a sua autonomia relativa. E os segredos degradados, como doentes parkinsónicos, perdidos de riso, fazendo tremer o repouso onde a inutilidade de tudo exerce a sua vocação vazia.
Uma máquina de fazer máquinas de fazer cócegas a tudo isto.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Estudo para um retrato da electrocussão





Liga-se o tempo à tomada
e logo se projecta luz
sobre todos os acontecimentos.

Ninguém quer reprovar a Cronometria
Descritiva, fazer exame a Eternidade II,
ou ir à oral de Ciências da Condição
e ser expulso da única escola de ser
por motivos poucos nítidos,
entre a insurreição, ainda que terna,
e a inconsequência terminal.

Ninguém quer aparecer nos jornais
famoso por ter falecido da forma mais vulgar
de que há memória e registo,
ainda que saiba previamente dos pactos de união
entre a sua morte e a posteridade relativa
da sua morte feita notícia
e seja partidário do sofisticado sistema político
praticado por aqueles para quem a inexistência
passou a ser um modo de vida,
tentando inclusive ascender a lugares de topo
na empresa plena da dissolução.

Ninguém mesmo em vão denuncia
o prejuízo deste corpo profético,
e o seu porte atlético alterado
por gerações e gerações
de telómeros obscuros
e histórias de amor
e deficiências profundas
expostos como estamos às máscaras
de oxigénio
e ao cinema apócrifo
da sedação.

Afinal, é sempre a mesma gota que cai
uma a uma iniludível do céu,
e que cai sobre a tomada do tempo
e que veste de rosas uma electrocussão.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Prece



Imagino o país da página em branco.
E, ao lado, mesmo ao lado,
o país da página preenchida.
No primeiro, a tentação de existir.
No segundo, a existência da tentação
primeira, segundo Santo André, o solícito,
como se a tentação fosse também exprimível
em tentáculos da existência e tentativas de tentativas,
assim a existência fosse uma medusa ao espelho,
com os seus cabelos geologicamente perturbados de signos
suicidas,
mas à qual devêssemos pelo menos um olhar, uma sílaba,
qualquer forma arcaica de insistir
na conveniência de não ter nascido,
como qualquer homem,
que não é de ferro.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Em comunhão com ninguém



Um convento fica longe da necessidade do mundo,
mas o amor fica ainda muito para lá do convento.
É como se não houvesse estradas para amar, ou pés
suficientemente descalços sobre as incandescências
da ausência,
e a reclusão no amor fizesse ela própria votos
de pobreza extrema,
escrevesse um diário da ingratidão
com o desmazelo,
e chegasse a uma fórmula de desviver
honestamente em comunhão com ninguém.

domingo, 3 de outubro de 2010

Hipnose para principiantes




Presta bem atenção.
I shall say this only once.
La vida es sueño.
Emma Bovary c’est moi.
Sou eu mesmo que te digo
em sonhos:
I do not love you.
I love youth.
Y tú te comprometes a pagar
la diferencia entre la verdad y la maldad.
Como se houvesse uma casa no tempo
onde ainda fosse possível
pentear o desânimo
dar-lhe um look moderno
oferecer-lhe um país com piscina,
um hiato com vistas para a reconciliação.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Auto-retrato com fantasmas e mamíferos



Eu e tu: o resto são fantasmas. Fábricas de lençóis aflitos. Empresas inadequadas ao mundo visível. A disfunção eréctil da promessa de aparição.
A sociedade aquosa e secreta dos fantasmas. Espécie de produto catabólico do omisso, que é o distintivo do amor e a pistola impalpável do mortal, que por mais amar o próximo se tornou efectivamente longínquo.

A casa deserta, continuamente adiada, sem episódios de maior relevo ou directrizes. Horas mais que malignas escoam do espaço interior a sua manutenção inevitável. A invertebrada mobília da noite. Os moluscos da insónia. A escuridão adesiva. O silêncio adesivo. A música da água morta nas canalizações. Passos imperceptíveis, dados em falso num plano sem gravidade nem resolução.
Tudo parece evitar-se a custos baixíssimos. Um aquário cheio de instantes destruídos, adaptados entretanto com as guelras da memória vã.

Eu e tu, dois mamíferos elegantemente despidos, maravilhados com as suas imperfeições ideais.
A luz da Lua que atravessa o postigo e descola imagens e desloca olhares. Técnicas nulas e mistas para acender a audácia, para ascender à audácia, como se estivéssemos mergulhados na pré-historia do ânimo e do aviso, no futuro trémulo da hesitação.
E no entanto, passeiam-se à nossa volta as formas plenas da desobediência em lingerie, influentes flores do interlúdio, os dejectos delicados da insensatez que já não nos assustam com a sua epilepsia mordaz.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Didáctica da mentira





Levitar é mentir. Tentar escapar às leis de Newton dá prisão perpétua, como a água que nasce, dita caminhos com desdém e lógicas imprevistas e, no fim, suicida-se nas altas temperaturas da parede que a detém para sempre no seu imenso oblívio,
como uma progressão aritmética sem razão, constante ou juízo.

Na próxima encarnação serás rastejante, que é o cúmulo do terrestre, que é para veres porque nunca deverias ter tentado mentir.
E rastejar é a forma mais acabada de prestar vassalagem à terra, com todo o nosso ser, dignidade incluída.
Por isso, a levitação está proibida. É-se obrigado a dizer a verdade sempre. A verdade do nosso peso terrestre ao ouvido das cicatrizes, que também se movem sobre o solo, ainda que sobre um solo fictício, onde a esterilidade fez governo e raízes, o desemprego grassou e o mundo fingiu um passado em comum com o resto do corpo que é ar, água e fogo fundidos.

Por isso, evito levitar em público. Continuo a achar que será
sempre melhor haver mais quem em nós nunca acredite.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Sala de pequenas cirurgias




Há sempre uma infecção no insondado que atrai as multidões e faz um brinde com a nossa serenidade adolescente e míope. E é possível ver-se daqui o insondado - e a sua capital a arder – e mais não fazer do que a descrição atormentada do obstáculo da vida, entre mim e o insondado, entre dois tempos rivais mas reconhecíveis na pestilência do séquito, no inferno dos seus desejos sem sentido e sem vez, na trágica pulsação de ninguém. Nus e dirimidos.
Mais não fazer, ou fazer tudo talvez para que o insondado permaneça insondado, contraindo assim o vírus da timidez tipo 1,
a gripe dos diminuídos por sua própria conta e risco,
uma hérnia no dizer
e um cancro no único pulmão da iniciativa.

O último prognóstico era muito reservado também
e recusou-se a prestar quaisquer depoimentos
aos jornalistas.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A síndrome de Setembro






Setembro não destoa dos uniformes brancos das empregadas que em breve eu vou matar. Mas elas têm o cuidado máximo de o repetir pelo corpo todo, Setembro pelo corpo todo, de alto a baixo, como enfermeiras amestradas e espíritos tácticos do lugar, para que eu nunca esqueça que o sol já brilhou mais forte noutras galáxias e que as memórias são fungos com tiques de cogumelos nucleares, e que os sonhos podem ser fósseis de derrotas, máscaras mortuárias de algum instante incapaz de voltar
a ter ênfase na constelação dos enganos.

Setembro é o filho primogénito da incompatibilidade com o fim do Verão. Um ligeiro atraso mental ilumina o final das tardes de Setembro. As folhas que caem, secas, cantam cantigas com menos um cromossoma na esperança. É como que Setembro tivesse nascido com a ousadia do híbrido ou do mutante nas mãos, mas ao mesmo tempo não soubesse como a usar e caísse instantaneamente em desuso pela hábil anemia do tempo, nas mãos da falta de coragem
e talvez até de coração.

As luzes do palácio estão agora desmaiadas.
Costumo deitar-me muito mais cedo em Setembro. Não faço por mal.
A cama favorece o império frágil de um naufrágio,
a noite sedada pode assemelhar-se repentinamente
ao útero de uma segunda e mais desavergonhada mãe,
com a sua neblina vesga e o seu romance adaptado ao grande ecrã.
Já na cama, peço às minhas empregadas que me contem uma história passada inteiramente no Verão. E elas contam.
À medida que a história avança, os uniformes brancos desaparecem,
como a breve semi-vida de um ansiolítico banal.
Todas elas têm tatuado a milésima segunda história
de Xerazade.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Notícias do Inferno





A questão é o trânsito sempre caótico nas vias principais do inferno. Só de helicóptero poderia cortar os membros supérfluos dos anjos e viajar até ti, que estás no céu de quarentena, tão descalça quanto aborrecida de tantos monossílabos ideais e sufocantes carícias.

Não fosse este pequeno pormenor e as distâncias inabaláveis que ainda pesam sobre as duas estâncias fixas - nós, dir-te-ia que há um lugar no purgatório, totalmente patrocinado pelo mal implícito, onde a clandestinidade está vestida de branco e os rumores de bom sexo e melhor asilo já chegaram, inclusive, às portas do paraíso, ainda que deturpados pela vulgar consciência de quem os repele por rivalidade, diferente cor política, ou apenas enquanto gesto reactivo,
como a virgindade velha da inveja camuflada de sermão.

E abolindo a pertinácia desses pormenores, a minha proposta é a de que nos encontremos precisamente neste sítio. Afinal, no inferno as distâncias não estão assim tão doentes que não possam – como no paraíso – não existir, e há bem pouco tempo foi inaugurada uma auto-estrada (que ainda carece de limites) entre o Inferno e o Céu, passando precisamente por essa área de infracção aberta
24h por dia,
para quem, como tu e como eu,
precisa muito de voltar a sofrer
lesões e orquídeas.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Fomos apanhados a desaparecer




Fomos apanhados a desaparecer
do mundo, uma noite em Madrid,
cobertos de decibéis e querosene,
depois de termos gasto metade do corpo
em tratados de tauromaquia,
massagens idiomáticas
e aulas práticas de suicídio
reversivo.
Era costume atirarmo-nos para a noite
e darmos saltos ornamentais
da plataforma da vida
para uma piscina de corpos
com menos de um metro de profundidade
e águas amarelas.
Era nítido o desejo pelo desaparecimento,
como uma aparição em ruínas.
Mas a pátria recomeçava invariavelmente no dia seguinte,
bombardeada e indiferente.

Hasta aquella fría noche de Madrid,
en una casa ubicada en la Avenida de los Aparentes,
cuando hemos por fín comprendido
la sagrada inutilidad de desaparecer.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

A uma passante (no facelessbook)





Não há crítica que convença
o cinema da minha cegueira
quando o teu corpo todo é usado
a favor de uma estátua com cílios.

Todas as imagens são filhas
da filtragem da luz do sol
e da minha introversão,
que entretanto
se encontrou finalmente
perdida.

Porque na realidade nunca te despes.
E nas tuas fotos do Facelessbook
estás demasiado convencida
que a noite não te trará nem mais um chapéu
proibido onde possas pousar a cabeça
e a fotogenia.

Ocultas o rosto na convexidade da técnica
e durante o teu sono injusto
o teu cabelo sangra copiosamente
entre o pus e o design
da dor e do atrevimento
de estares tão longe de mim.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Epitáfio




Por vezes fazes anos
que morreste,
e o aniversário da tua morte
é a motorizada que não deixa
de passar por mim, todos os dias,
coberta de esperma de foguete
cinzas e desperdícios,
e que vai, permanentemente em festa
ao lado do meu veículo, a arder
na direcção inconclusa do tempo,
contra a vez de um espelho
aprioristicamente partido,

sempre

no sentido de chegar ao inferno
ao mesmo tempo que eu.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Derrames oculares



1. O amor tem mil olhos e mil derrames oculares. Abrem-se e fecham-se portas, pálpebras, portas, a uma velocidade que a vertigem não pode imitar. É antes um permanente alerta mascarado com a espessura trágica de um quotidiano de estúdio, estupidificante, o amor quando sobe ao olhar proibido de olhar. Uma fonte de preocupações impudicas, um jacto de luz inconclusa, como um lago míope no meio da oportunidade obliterada da paixão. Uma comédia de lágrimas e algoritmos entrecortados por finas camadas de mal-estar geral,
cefaleias e vassalagem.

2. Podias ter vindo comigo, quando te chamei, para debaixo de todas as possibilidades. E esta afirmação repete-se continuamente, enquanto o amor for imperfeito e pertinaz, na cabeça daquele a quem ocorrem todos os pontos de vista e, consequentemente, todos os derrames oculares. Na cabeça daquele que hesitou e não pôde comparecer debaixo de todas as possibilidades. Na cabeça daquele a quem foram dados mil olhos e – tal como Quixote – uma conjuntivite lendária e galopante, para tornar a coisa mais verosimilmente irreal.

3. E é na imprudência fétida desta festa primária, neste velório do acaso ao acaso abandonado por caprichos e preceitos culturais, que eu rendo os meus mil olhos injectados à tua total desaparição.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A angústia da Influência




Há já tantas pessoas desaparecidas em Pessoa,
que já não surpreende que os melhores mortos
sejam aqueles que, em vida,
trabalharam arduamente
para que todos desaparecêssemos.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Despir outra pele




O meu casaco de imposições biológicas está gasto
nos sítios onde o corpo oferece resistência ao tempo
e há um maior número de glândulas sudoríferas.
Chego a casa, dispo o casaco, e permaneço
com o casaco vestido.

A noite é uma ponte em ruínas.
A lua, um holofote de ideias fixas.
Ao longe vêem-se os cabos de sustentação
da inércia.
É inútil eleger alguma hora melhor
que nos proteja.
A minha vida é permanecer
auscultado por essa fantasmagoria.
Com ou sem casaco,
especializei-me em permanecer.

Permanecer com as metástases do meu casaco,
como as metástases do meu casaco
permanecem em mim, mesmo quando o dispo,
contemplando uma ponte em ruínas
e exercendo aí a minha permanência
o melhor que posso e sei,
24 horas por dia.

Há sempre um casaco a cobrir as costas
demasiadamente expostas da permanência.
Pêlos, ainda que pálidos e breves,
na pele postergada dos mamíferos.
E o invisível gesto de alguém que se apressa
lentamente a aconchegar-te ao primitivo,
com as mãos sujas de desdém
e a tecnologia do contacto indestrutível.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O Nosferatu do método



Tenho o pressentimento inacabado e esbaforido
da tecla tocada até ao fim.
É o som que arromba o trabalho da tecla,
a música que destrói a sua carpintaria
extremamente permissiva,
o grito que escurece as pancadas do sexo
e dissolve a cena violenta num sono vigiado
e privilegiado por lâmpadas e labirintos
incumpridos.

O alarme é um animal de hábitos negros:
soa apenas quando a cópula termina.
Nenhuma parte de mim precisa de mim.
Nenhum prazo, ou arranjo,
ou necessidade centrípeta
sente a falta radical da minha alegria
para que possa existir.
Aqui, a luz perde a utilidade também.

É como que se de repente tudo estivesse
estranhamente pousado
num acidente certíssimo
e à oportunidade fosse acrescido
o Nosferatu do método.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Expiação




dói-me o teu aparelho longínquo,
dói-me o irresistível artesanato
da distância,
dói-me o irrespirável teatro
ortopédico da salvação,
dói-me o choque frontal do amor
com a sua tremenda falta de humildade,
dói-me a anestesia do teu lugar vago,
dói-me a dança esquelética da minha dissimulação,
dói-me a propaganda póstuma das tuas mãos,

quando aplaudem a castração do herói em palco,
quando atrasam a pesquisa para a cura da neoplasia
da eternidade,
quando investem todas as suas economias e auroras
numa dimensão mais intolerante,
quando massajam a minha culpa ciclópica
e maltratam o meu endereço final.

dói-me, sobretudo, a grande subjectividade da dor,
a arquitectura desmaiada da esperança,
a longa travessia do rio líquor a nado,
a falsa assinatura dos seus contratos nervosos
com o imperdoável,
e o preço que eu pago
pela minha dor elegante
nas lojas mais prestigiadas da cidade
arrasada do amor.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O convite ao convite




I

Interessa-me fotografar a mobilidade do convidado,
fazer uma biopsia aos seus passos pela tradição
menos frequentada por mim

equipá-lo de uma cronologia compatível com o seu talento
para me diminuir

talvez um escafandro elegante e um desnecessário calendário omisso
o ajude a respeitar
um calafrio na cave que o come vivo
como um viveiro electrónico de instantes
com necessidade de recarregamento rápido
e actualizações várias
e sem acesso à sua palavra-passe
tamanha é a falta de rede nos subúrbios do êxtase,
nas vésperas do veredicto.

Quero um convidado à sombra da sua desproporção
constante e crucial.
Convicto do pouco tempo que lhe resta para aceitar
o convite, preparar-se rapidamente para a festa,
e sair de lá sem nenhuma garantia de lá ter estado
convicto.

II

Recordo que também eu sou um convidado
e tenho uma cronologia fomentada por interesse
alheio, elíptico e prolixo.

A desproporção amamenta o meu tempo derramado.
E sou obrigado a aceitar os acenos da inércia
quando não te tenho por perto
para voltar a afastar-te de mim.

Nasci de uma estrela teórica
na manhã programada
para nunca existir
a não ser
sempre
em Não Existir.

Uma insólita primavera nas unhas mascara,
de facto, uma doença rara nas raízes.

Somos, então, pelo menos, dois convidados.
Um deles com acesso à região do princípio.
Outro à do fim.

Sim, porque um dos convidados tem o dom
de poder também receber convites
e sms’s do infinito.

Um convidado não existe sozinho,
nem o amor pode ser democrático
por delicadeza,
por isso,
alguém precisa de alguém, e que esse alguém
lhe dirija por uma vez que seja um convite preciso
e que esse convite sobressaia
na monotonia monoteísta do presente
como um convite à ofensa
com um sistema de absolvição à distância
de um convite.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Risco de explosão




Não fui vacinado contra a arrogância
do dia seguinte.
Vivi sempre no palácio das minhas necessidades
e fiz votos de pobreza extrema
quando te recebia
depois de a neve ter tornado os campos
féis à tua passagem perigosa
minados de interjeições suicidas.
Da última vez que te vi, e ao ver-te afastada,
a caminho da morte da perspectiva,
despedi os meus criados mais antigos
despedi-me das vozes e das panteras
e despi-me das muletas, dos andrajos
e dos ardis.

No momento em que acendi um cigarro
já no meu quarto, no palácio das minhas necessidades
já cumpridas,
esqueci-me que os fantasmas eram
feitos de um gás altamente inflamável
como a ferida áfona
que de ti
eu sempre desejei
aprender de cor.

domingo, 11 de julho de 2010

A síndrome





A quem apresentar queixa
porque a vida nos agrediu?
Como deixar nas desleixadas mãos
das autoridades incompetentes
um depoimento possível,
e a conivência histórica de um sorriso,
e um pequeno charco trágico no chão
desenhado pelas glândulas da incerteza
interpretado pela parafernália do príncipe,
dirigido pela má índole
e pós-produzido pela má-fé?

Como hesitar demasiado
sem correr o risco de deixar
de existir?
A quem apresentar as condolências depois?
Quando a gôndola do tempo se afundar
num doméstico erro de perspectiva
e numa boca sensivelmente aleatória e ortopédica,
já nenhuma originalidade na confissão vencer
senão a dos frescos dos tectos da síndrome

com as suas luzes estrábicas de submundo
fieis ao paradoxo de Proserpina
subsumidas tauromaquias
na pele

sexta-feira, 9 de julho de 2010

La pistola virgen: o período refractário ao espelho





Logo estarei na indiscretíssima janela
de um quarto com vistas
para um lugar indecidível,
uma praça à qual lhe faltarão
memória e clientes,
uma oficina sedada
no meio de um deserto doente
diante do teu fastio.

Retrato tipo passe, senhor passageiro,
tenha uma boa viagem de regresso
da desgraça de não ter havido
um só momento de paz enquanto
não desaparecias em mim.

Do tipo: olha eu aqui,
patético e manuelino,
encaixilhado na minha falta de talento
para te perder e pagar promessas
numa casa
com paredes imperdoáveis de nascença
e chão arrependido

numa casa
de inconfessáveis janelas sem caixilho
e vidros sem vida por malícia
e um telhado tecnicamente infiel
e um ar pesado e incompetente
e incompreendido.

Um dia tu passarás, como todas,
debaixo da minha janela indiscretíssima
sem me ver, através de mim, através da técnica
dos fantasmas em serviço
e, misteriosamente, aceitarás viver sem signos
e sem recompensas
num quarto alugado como o meu,
num hotel de gelo incerto
na capital da insensatez.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Estátuas de calor




O calor cala a cena habitual,
inunda de nudez e estátuas
as nossas novas instalações.
Despromove o equilíbrio do corpo.
Instaura uma regra movida a indisciplina,
uma vida de estilo barroco minimal.
Enquanto a ideia da água
veste o vestido de noite
donde sobressaem as suas próteses
insolúveis na sedução.

Cada um com o seu infinito pessoal e muita pele ambígua
atravessa o calor.
Há um anjo na personalidade utópica da ventoinha.
As horas engordam. Algumas mais exageradas,
chegam mesmo a morrer, sem darmos por isso.
Os animais não dormem: derramam
lentamente o seu instinto
amador.

As faces abandonam o seu âmbito
mais ou menos prestável
e pedem pão extemporâneo
às portas das grandes desfigurações.

Eu escrevo numa banheira contígua
histórias de hipertermia maligna
provocada apenas por amor.

domingo, 4 de julho de 2010

Dia mundial da possessão




Passei a maior parte da tarde
aos comandos da minha nova nave natal
quase sem combustível, o corpo faz promessas
e manobras arriscadas
começa o reino dos tristes agitados
na península pobre dos esgares
a tradição anedótica da tua face
na tua face postergada
face à possessão.
Começa também todo um período inesquecível
de zimbórios e derrames
e a noite toda orienta a tese histérica
e ocidental de que a vida só existe
do pescoço para baixo, nada mais,
mas o dom de falar várias línguas refutadas
prova-nos o contrário
e faz a face mais falsa falar.
É precisamente do pescoço para cima
que as imagens evocam mais a sua irresolução
os sete círculos do inferno elevados ao quadrado
e um grito nasce sempre de olhos bem fechados
como na matemática a raiz quadrada de dois
é um número irracional
e nessa mesma redução ao absurdo
o meu habitáculo contrai-se
por isso visto o meu melhor fato
para a desintegração
e também por isso não ignoro
as praias da inércia
as máscaras do realce
e a massa atómica relativa
do cansaço, que virá, juro que virá,
assim como os privilégios de quem morre
na república microscópica do engano

por engano
e arte de bem enganar.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Uma casa para a apostasia




Não tenho uma só casa para a apostasia.
O meu afastamento não permite limites
perfeitos
nem pegadas que indiquem qualquer acontecimento
impreterível
e, no entanto, eu já passei por ali,
já fiz com que o espaço se dilatasse para que eu pudesse
passar por ali
com o meu tempo excessivo e retraído
mas nem uma morada ficou para contar,
nem uma pensão, nem um mote de hotel de estrada ou de esquina
nem a derme crucial de um banco de jardim
todo voltado para a descrição ofegante da paisagem.

Nem a morte me deixou lá dormir
quando soube da forma como eu
desacreditava

e como era necrodinâmica
a minha vida.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Despedida no deserto




Não é tanto a tua carta fisionómica que me pede
que a assevere com a chancela do meu mal.
A minha melancolia está antes no deserto,
sexualmente envolvida com tuas premonições
mais singulares.
Querias tanto ir ao deserto que a vida abreviou
num deserto. E a imensidão deu provas
de uma ingenuidade sem par,
enquanto tomávamos altas resoluções,
e queimávamos a retina
e já nada nos retinha em nós mesmos
excepto a falta de ar
e de paz
e de depois.

Por outro lado, o pôr-do-sol no deserto
protege-nos dos lugares onde cresce
a iniciativa.
A falta dela absorve as infelizes frequências do fim.
À falta dela despedimo-nos.

E o fim é uma fonte
a esgotar-se lentamente
nas agências leprosas do tempo.
Porque o feto pusilânime, a cria lenta, continua a morrer
porque a profissão do que perdemos é ser persistente
continuamos a perder.
Porque ainda se pode fumar na sala de espera
do inferno.
E consultar a biblioteca
e cuspir para o chão
das despedidas.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O beijo e o pormenor





Beijo-te:
regressa a paralisia do sono
uma ave sem asas ao apelo
e ao agravo
e as grandes questões
fazem agora parte de uma dieta
rica em represálias
e pormenores.

E a propósito de um quarto fechado
numa determinada técnica,
numa indeterminada Era,
as pessoas praticam a apneia
da razão ao pormenor.

A asfixia é uma máscara generosa
de rescisões.

Entretanto, corre uma brisa
torcionária ao nosso redor,
um circo ambulante inflama a povoação
mais próxima dos ângulos caídos
em desuso pelo latim das línguas refractárias
as bocas abrem-se mais e melhor
pelo caminho, perdem-se alguns pormenores
não obstante uma febre aftosa de pássaros
uma primavera que procede de Hitchcock,
e as ruas desertas, de certo modo um silêncio
supersónico que as coloca nos escaparates
da hora inferior.

E provavelmente o melhor champanhe
vigilante do mundo
as luas doutoradas em Saturno
e as estrelas andrajosas da circunstância.

Não há luzes mais ingratas
nas imediações
do céu da boca.
Na louca distensão da caverna, os prisioneiros
vêem pornografia barata
e ouvem coitos de fadas ao deitar
e recebem as penúltimas
instruções.

E a noite toda é uma fábrica extravagante de coser
diálogos às repúblicas dos rostos sucessórios do amor.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Negócios Extáticos



Enquanto Santa Teresa transverbera
qualquer coisa
para o jantar
eu elucido as febres das desconhecidas
que passam cegas,
e em bicos dos pés,
pelas cataratas do amor.

Somos uma empresa fiável.
Ela é a minha sócia protectora.
E eu sou ágil nas disciplinas que exigem
menos atenção e mais contracções.

Especializei-me em mamíferos revolucionários
coisas sem explicação nem retorno
deusas, dessas que infectam facilmente
nas teorias do álcool e do furor

que apagam os dedos nas chagas
deslumbrantes do percalço

que fazem os olhos mudar de horizonte
e o horizonte mudar de cor.

Nisto, a febre baixa.
As desconhecidas
revelam o corpo acidentado
de sirocos.
E no entanto,
a fome não cicatrizou.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Life pretending death




Quando o mote é o amor finjo-me de morto
e mudo de conversa, de Veneza e de canal
e de hábitos nocturnos e tristes
e quando não posso fingir-me de morto
uso uma técnica em tudo parecida à vida
que um beijo plagia
na sua perfeição sufocante.

Pratico um certo tipo obscuro de sedação
procuro que a minha escola hipnagógica
aflija a tua pele de instantes
irreversíveis.
Por exemplo:
interessa-se sobretudo que o meu nível de consciência
se entregue a uma diminuição radical de luz e periferias,
mas que nunca perca de vista
o assalto que é preciso fazer sempre
que o outro morre também
quando o mote é o amor
e as práticas obscuras de ambos
acusam uma intimidade rasgada
precisamente no mesmo vínculo
perdido.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

História de uma maçã (pecado hipertextual)




Pude afinal na prudência ter adoecido.
Ou seria só o sono a cicatrizar mal?
A febre felizmente era apenas uma alegoria
cínica, um gato com alergia à vida,
um pássaro sem um plano preciso
onde pousar as suas perigosas alíneas
intemporais,
calor e humidade a dançarem bêbados
na prostração.

Já na Aldeia, consegui que me acreditassem
de um planeta seguinte e perguntei por ti
e pela parte inoxidável da maçã.
Muitos homens tinham morrido
pressionados pelas circunstâncias.
É sempre assim, quando uma mulher infecta
a sua graça nas páginas da pulsão.
As crianças brincavam nas sucatas
com carcaças, e as vidas sintéticas
eram os seus brinquedos mais iluminados.

Entretanto, a tua ausência
feita espada na boca
dos maridos minguantes
foi apanhada numa rede
de tráfico de expectativas
desiguais.

Mais homens morreram.
Mais homens morreram.
Até que a população masculina
se extinguiu.

Tive sorte, não só porque pertencia
a um planeta seguinte e distante
mas porque a necessidade
de uma minoria essencial
ainda recruta fantasmas
para integrar a sua equipa
de ficções extraviadas.

Ainda assim, fui discriminado
por não gostar de maçã
e objectar outras serpentes
pedantes da aculturação.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Perigos da representação




Não foste tu
nem a vida
mas Stanislavski
quem me ensinou
a chorar.

E talvez por eu ser alérgico
a ti e à vida
as lágrimas apareçam agora
disfarçadas
de corrimento ocular

e um cheiro intenso
a sobreexposição
corporal
a película queimada

nada mais.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Heart Failure




O coração seduz porque apresenta ambiguidades
insuspeitadas aos críticos da arte cardíaca.
Já os engenheiros e os economistas teimam em contrariar esta tese
porque acreditam que o coração não faz mais do que a sua obrigação.
O psiquiatra vê no coração um monte de músculos à mercê
de um vermelho tóxico e propagandístico (não inocente).
O homem do talho, contudo, progride na fantasia
e vende corações de animais comestíveis e, como numa aula de anatomia,
coloca-os na montra do talho com o preço e o desapreço por cima deles.
Finalmente, o arranca-corações arranca corações. E é tudo.

No entanto, é do coração que o poeta fala
o seu domingo sangrento.
E domingo sangrento é um programa de rádio
que o poeta concebe no ventrículo esquerdo
porque tem mais acústica e ritmo
para contrariar o resto da programação.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Gestos a evitar



Recupero da febre das princesas de mármore.
Vou tornar-me num homem necessariamente melhor
mas sem flores para dar.
A partir de agora, levarei apenas o meu corpo frágil
ao baile
e ao teu pescoço as minhas mãos
desiguais.
Viajarei sozinho para as ruínas de amanhã
capital do novo âmago.
Levarei a minha face à face da estrada
estupefacta, e serei eu próprio quem irá escrever
a notícia dos meus passos directos ao acidente
e ao oriente da idade, e de tudo o mais
que nos embaraça
de rugas e teatros exaustos
entre tantos gestos a evitar.

domingo, 6 de junho de 2010

Elogio da imperfeição




A maior avenida não é a da liberdade.
Há lugares que só na proibição se acendem.
Por exemplo: uma mulher quis ser uma sereia
célebre e ofereceu metade do seu corpo
à ictiologia e à natação.
Mandou vir a mudança radical pela internet.
Como se esquecera de especificar o animal
marinho, trouxeram-lhe um fato de cefalópode
sem possibilidade de troca ou reembolso
de esperanças.
No entanto, a mulher que queria ser uma sereia
célebre não desesperou. Vestiu o fato
e comprou um microfone para cada tentáculo
e foi para a avenida da liberdade cantar.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A lenda do homem-algo





Parte de mim está vestida a rigor para o diálogo
e leva rosas na lapela e supernovas no epitélio
lingual e chocolates na mansidão para a sua amada.
A outra parte recebe estes presentes todos
ao pormenor no conforto de sua casa.
Depois escreve uma carta que a primeira parte
não pode nem ousa decifrar.
A primeira parte de mim parte-se em bocados e chora,
e o choro mancha-lhe a elegância, murcha-lhe as rosas,
apaga-lhe as supernovas e desmancha os chocolates.
Uma vez nua e consternada, a minha primeira parte
resolve mais uma vez contra-atacar
e usar a sua nudez e a sua consternação
a favor do bem comum e da lógica indivisa das galáxias
mas a minha outra parte e o seu universo continuam
em contracção e eu, aproveitando o intervalo
e o debate aceso entre o governo e a oposição,
tomo o partido do que está a mais
e um comprimido da classe dos inevitáveis
e vou-me deitar.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Still Life




Há um momento em que, de facto, se faz justiça.
Quando o silêncio demove as coisas do seu suporte terrestre.
E as coisas continuam pousadas no peso de serem assim,
tanto quanto o destino,
deixando contudo à sua volta uma mancha de hipocrisia
(ainda não há fraldas para a incontinência das coisas
que sabem que voam, mas fingem o repouso
a preços baixíssimos.)

domingo, 30 de maio de 2010

Notícias do Inferno





No inferno, reencarnamos a cada minuto que passa
numa nova comédia viva. E isso cansa, inevitavelmente, cansa
o teatro anatómico do tempo, as estruturas tortuosas
do pensamento racional a que nos tinhamos habituado em vida
e os costureiros da má fé são dos únicos
que não pagam o tributo do zapping genesíaco
para trabalharem dia e noite nas oficinas da inconformidade geral.
Tudo isto pode ser ainda um pouco mais severo
se tivermos em conta que o diabo nunca existiu.

O inferno pode inclusive ferir
a insensibilidade dos espectadores
mais distraídos com questões pirotécnicas
ou com as sessões permanentes de sexo ao vivo
entre os seus conflitos mais nítidos
e toda a organização do festival.

Neste sentido, o inferno não só são os outros,
mas os outros que já não são eles próprios
e eu mesmo quando deixo de ser eu mesmo,
fora dos sessenta segundos que me justificam
e em que ainda é possível assegurar a analogia.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O pior está para vir




Ajuda a garantir a descontinuidade da espécie.
Usa a paixão em todos os pontos finais
e lava sempre a tuas vírgulas com água e filosofia.
Veste-te ocasionalmente de príncipe.
Pelo menos duas a três vezes por semana
diz a Camila que a amas com frequência
e sentido funesto.
Não uses o W.C. destinado ao pensamento
a não ser que tenha mesmo de ser
e não haja gente viva num raio de uma vida
e 300 milhas para oeste.
Se te apetecer algo para comer
esquece a vizinha da frente
até porque essa já tem um marido
a pilhas e sete gatos para dar de comer
e o vírus da moda e as mucosas tristes.
Volta-te antes para Pessoa ou Baudelaire
dá uma volta por Benedetti, visita Borges
na cegueira de uma biblioteca antiquíssima,
os clássicos fazem-te calar
e tornam a fome mais subjectiva,
comestível até,
como uma lepra lenta e autotélica.
E depois reaparece. Todos desejam alguém
que surja das cinzas.
Mas não prepares uma ressurreição qualquer,
dessas que se compram na iconografia do previsível,
aberta vinte e quatro horas por dia,
entre o espancamento e o cúmulo da reacção.
Faz a vontade do pai e ao país: foge deles.
Mata-os a cada microsegundo com mais decepção,
dedos, dardos e gasolina
mas nunca o bastante
para que eles não se possam mexer,
pelo menos um pouco, da influência para cima.
E deita-te com a literatura toda aos teus pés,
porque entre centro e ausência
o pior está para vir.